Sob o Telhado de Lusalite: A Minha Família Quase Me Quebrou

— Mariana, não voltes tarde. — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, carregada de uma preocupação que já não me aquecia. Olhei para trás, com a mão na maçaneta da porta, e vi o olhar dela: cansado, desconfiado, como se cada saída minha fosse um risco para a reputação da família.

— Não te preocupes, mãe. Vou só à casa da Inês — menti, sabendo que ela nunca acreditava. O meu pai, sentado à mesa, nem levantou os olhos do jornal. O silêncio dele era mais pesado do que qualquer grito.

Saí para a noite húmida da aldeia, sentindo o peso do telhado de lusalite sobre mim, mesmo à distância. Cresci ali, entre paredes frias e conversas sussurradas. O meu irmão mais velho, Rui, já tinha saído de casa há dois anos, depois de uma discussão violenta com o pai. Nunca mais voltou. A minha irmã mais nova, Sofia, era a preferida da mãe — ou pelo menos assim eu sentia — e eu ficava sempre no meio, invisível.

A aldeia era pequena e as pessoas sabiam tudo umas das outras. Ou pensavam que sabiam. Eu sabia mais do que queria: ouvi conversas atrás das portas, vi lágrimas escondidas e senti o cheiro a aguardente nas noites em que o meu pai chegava tarde do café.

Nessa noite fui mesmo à casa da Inês. Ela era a única amiga em quem confiava. Sentámo-nos no quintal dela, enroladas em mantas, a olhar para as estrelas.

— O teu pai voltou a beber? — perguntou ela em voz baixa.

Assenti. — E a minha mãe faz de conta que não vê. Só se preocupa com o que as vizinhas vão dizer.

— Já pensaste em sair daqui?

— Todos os dias. Mas não tenho para onde ir. E a Sofia? Não posso deixá-la sozinha com eles.

O silêncio caiu entre nós. Lembrei-me da noite em que ouvi os meus pais a discutir sobre dinheiro. O meu pai gritava que não era burro nenhum, que sabia muito bem o que ela andava a fazer com o vizinho do lado. A minha mãe chorava baixinho, pedindo-lhe para não acordar as meninas. Eu tremia na cama, com medo de que ele viesse descarregar a raiva em mim ou na Sofia.

No dia seguinte, acordei cedo para ir ajudar a minha mãe na horta. Ela estava calada, com os olhos inchados. Tentei puxar conversa:

— Mãe, posso ir estudar para Lisboa no próximo ano?

Ela largou a enxada e olhou-me como se eu tivesse dito uma heresia.

— Achas que temos dinheiro para isso? E quem é que vai ajudar aqui em casa? A tua irmã ainda é pequena.

— Mas eu queria mesmo sair daqui…

Ela virou-me costas sem responder. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que eu tinha de ser sempre a responsável? Porque é que os sonhos dos outros valiam mais do que os meus?

À noite, o meu pai chegou bêbado outra vez. Atirou as chaves para cima da mesa e gritou:

— Mariana! Anda cá!

Fui ter com ele, o coração aos pulos.

— O que é isto? — Mostrou-me um caderno meu, cheio de poemas e desabafos. — Andas para aí a escrever coisas sobre nós? Achas-te melhor do que esta família?

A minha mãe tentou acalmar a situação:

— Deixa-a estar, António. É só uma miúda…

Mas ele não quis saber. Rasgou o caderno à minha frente e atirou os papéis para o chão.

— Aqui ninguém é melhor do que ninguém! — berrou.

Fugi para o quarto e chorei até adormecer. No dia seguinte, faltou-me a coragem para ir à escola. Fiquei na cama, fingindo estar doente. A Sofia veio sentar-se ao meu lado.

— Não chores, mana. Um dia vamos sair daqui as duas — sussurrou ela.

Aquelas palavras deram-me força. Comecei a juntar dinheiro às escondidas: trocos dos recados, prendas de aniversário guardadas no fundo da gaveta. Escrevia à noite, em folhas soltas que escondia entre os livros escolares.

O tempo foi passando e as discussões em casa tornaram-se rotina. O meu pai perdeu o emprego na fábrica e começou a passar mais tempo no café. A minha mãe envelheceu dez anos num só inverno. Eu sentia-me cada vez mais sufocada.

Um dia, ouvi-os discutir outra vez — desta vez sobre mim.

— A Mariana anda metida com aquele rapaz da vila! — acusava o meu pai.

— Não anda nada! Ela só quer estudar! — defendia a minha mãe.

— Estudar? Para quê? Para nos envergonhar?

Saí de casa sem dizer nada e fui até ao rio. Sentei-me na margem e chorei tudo o que tinha guardado durante anos. Senti uma mão no ombro: era o Rui.

— Vieste ver-nos? — perguntei entre soluços.

Ele assentiu e sentou-se ao meu lado.

— Não consegui ficar longe sabendo como as coisas estão aqui…

Contou-me como tinha arranjado trabalho numa oficina em Coimbra e como queria levar-me com ele quando pudesse arrendar um quarto maior.

— Mas e a Sofia? — perguntei.

— Ela ainda é pequena… Mas tu tens de sair daqui primeiro. Depois logo vemos como ajudá-la.

Voltei para casa com uma esperança nova no peito. Nos meses seguintes, aguentei tudo em silêncio: os gritos, as acusações, as lágrimas da minha mãe e os olhares de desilusão do meu pai.

Finalmente chegou o dia em que o Rui me ligou:

— Arranjei um quarto para ti! Vens amanhã?

Fiz as malas à pressa durante a noite. Deixei uma carta à Sofia debaixo da almofada:

“Um dia venho buscar-te. Prometo.” Saí sem fazer barulho, levando comigo apenas o essencial e todos os sonhos que nunca me deixaram adormecer completamente.

A vida em Coimbra não foi fácil: trabalhei num café durante o dia e estudei à noite. Senti falta da Sofia todos os dias; ligava-lhe sempre que podia, prometendo-lhe um futuro melhor.

Os meus pais nunca me perdoaram por ter saído assim. Durante anos não me falaram; nas festas da aldeia evitavam olhar para mim quando eu ia visitar a Sofia às escondidas.

Hoje sou professora numa escola secundária perto do Porto. A Sofia acabou por vir viver comigo quando fez 18 anos; reconstruímos juntas aquilo que nos faltou em casa: paz e compreensão.

Às vezes pergunto-me se alguma vez vou conseguir perdoar verdadeiramente os meus pais — ou se eles algum dia me perdoarão por ter escolhido ser feliz longe deles.

Será possível quebrar um ciclo sem nos perdermos pelo caminho? Quantos de nós vivem ainda sob telhados de lusalite, presos ao medo e ao silêncio?