O Meu Filho Partiu, Mas Eu Não Consegui Virar as Costas ao Meu Neto

— Mãe, não me peças para ficar. Eu já decidi. — As palavras do João ecoaram na sala como um trovão num dia de verão. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. Olhei para ele, o meu filho, o menino que embalei nos braços, agora com os olhos frios e distantes, como se eu fosse uma estranha.

A Ana, minha nora, estava sentada no sofá, com o pequeno Tiago agarrado às pernas dela. O miúdo tinha só quatro anos e já percebia que algo estava errado. Os olhos dele, grandes e castanhos como os do pai, brilhavam de lágrimas contidas.

— João, pensa bem… — tentei, com a voz trémula. — Não podes simplesmente virar as costas à tua família!

Ele desviou o olhar, encolhendo os ombros. — Não aguento mais. Preciso de espaço. Preciso de ser feliz.

Fiquei ali parada, sem saber o que dizer. O que é que se responde a um filho que decide abandonar tudo? O que é que se faz quando o coração se parte em mil pedaços e ainda assim temos de ser fortes pelos outros?

Naquela noite, depois de ele sair com uma mala pequena e um olhar vazio, sentei-me à mesa da cozinha com a Ana. Ela chorava baixinho, tentando não acordar o Tiago. Eu queria abraçá-la, mas sentia-me culpada — como se a culpa fosse minha por ter criado um filho capaz de fazer aquilo.

— Desculpa, Ana… — sussurrei.

Ela abanou a cabeça. — Não tens culpa. Mas não sei como vou fazer isto sozinha.

Foi aí que percebi: não podia deixá-los sozinhos. O João tinha partido, mas eu continuava ali. E se havia algo que podia fazer era tentar remendar os estragos.

Os dias seguintes foram um pesadelo. A notícia espalhou-se pela vila como fogo em mato seco. As vizinhas cochichavam à minha passagem; algumas olhavam-me com pena, outras com desdém.

— Olha, lá vai a mãe do João… — ouvi uma vez à porta do café da D. Amélia.

— Aquilo é gente para abandonar a família… — respondeu outra voz.

A vergonha queimava-me as faces, mas eu erguia a cabeça e seguia em frente. Tinha de ser forte pela Ana e pelo Tiago.

Comecei a ir mais vezes lá a casa deles. Levava sopa, ajudava com as compras, ficava com o Tiago quando a Ana ia procurar trabalho. Ela era professora contratada e naquele ano não tinha colocado; andava de escola em escola, sempre à procura de uma oportunidade.

Uma tarde, enquanto brincava com o Tiago no parque, ele perguntou:

— Avó, o pai vai voltar?

O nó na garganta quase não me deixou responder. — Não sei, querido… Mas eu estou aqui contigo.

Ele abraçou-me com força e senti as lágrimas caírem-me pelo rosto abaixo. Como é que se explica a uma criança que o pai escolheu ir embora?

Os meses passaram devagar. A Ana conseguiu um part-time numa papelaria; eu ficava com o Tiago até ela chegar a casa. O dinheiro era pouco, mas dávamos conta do recado.

No Natal desse ano, fizemos questão de montar a árvore juntos. O Tiago pendurou uma estrela dourada no topo e pediu um desejo em segredo. Mais tarde, ouvi-o sussurrar:

— Queria que o pai voltasse…

O meu coração apertou-se ainda mais.

A família do meu marido nunca aceitou bem a Ana; diziam que ela era “moderna demais”, “independente demais” para o João. Agora, culpavam-na pelo abandono dele.

— Se fosses mais submissa… — ouvi a minha cunhada dizer-lhe num almoço de domingo.

— Chega! — explodi finalmente. — O João fez as escolhas dele! A Ana não tem culpa nenhuma!

O silêncio caiu sobre a mesa como uma pedra. Pela primeira vez em meses senti-me viva — finalmente alguém dizia em voz alta aquilo que eu pensava todos os dias.

A Ana olhou para mim com gratidão nos olhos. Depois desse dia, aproximámo-nos ainda mais.

Mas nem tudo eram momentos de união. Houve noites em que me perguntei se estava a fazer bem; se devia mesmo envolver-me tanto ou se devia deixar que cada um seguisse o seu caminho.

Uma noite, depois de adormecer o Tiago com uma história sobre dragões e castelos, sentei-me na varanda com a Ana.

— Sentes falta dele? — perguntei-lhe baixinho.

Ela ficou calada durante uns segundos antes de responder:

— Sinto falta do homem com quem casei… mas não deste João que nos deixou.

Ficámos ali em silêncio, ouvindo os grilos e sentindo o frio da noite entrar pelas mangas do casaco.

Certa manhã de primavera, recebi uma mensagem inesperada do João:

“Mãe, preciso falar contigo.”

O coração disparou-me no peito. Marquei encontro num café discreto da cidade.

Quando chegou, estava magro e cansado; parecia mais velho do que realmente era.

— Mãe… — começou ele, hesitante — Sei que fiz mal… Mas não consigo voltar atrás.

Olhei-o nos olhos e vi ali um rapaz perdido, cheio de medo e arrependimento.

— O Tiago pergunta por ti todos os dias — disse-lhe apenas.

Ele baixou a cabeça. — Não sei ser pai… Não sei ser marido…

— Mas sabes ser filho? — perguntei-lhe, tentando conter as lágrimas.

Ele ficou calado. Depois levantou-se e saiu sem olhar para trás.

Voltei para casa com o peito apertado mas também com uma estranha sensação de alívio: pelo menos tinha tentado.

Os anos passaram e aprendi a viver com a ausência dele. O Tiago cresceu rodeado de amor: meu e da mãe dele. A Ana voltou a sorrir; arranjou um emprego fixo numa escola primária e até começou a sair com amigas ao fim-de-semana.

Eu continuei ali: avó presente, mãe resiliente, mulher marcada pelas escolhas dos outros mas determinada a não deixar que isso definisse quem sou.

Às vezes ainda sonho com o João em pequeno; acordo com saudades do filho que perdi para uma vida que não compreendo.

Mas olho para o Tiago e vejo esperança: vejo nele tudo aquilo que ficou por dizer entre mim e o pai dele; vejo amor onde antes só havia dor.

Pergunto-me muitas vezes: será que fiz tudo o que podia? Será que algum dia vou perdoar verdadeiramente o João? Ou será que há feridas que nunca saram?

E vocês? O que fariam no meu lugar? Conseguiriam virar as costas ao vosso neto por causa dos erros do vosso filho?