A Carteira do Meu Marido, a Minha Prisão: Uma Luta por Liberdade num Casamento Gelado
— Mariana, onde está o recibo do supermercado? — A voz do Rui ecoou pela cozinha, fria e cortante como uma lâmina. Eu estava a tentar preparar o jantar, mas as mãos tremiam-me. O cheiro do refogado misturava-se com o medo que já se tinha tornado rotina.
— Está na gaveta, junto dos outros — respondi, sem o olhar nos olhos. Sabia que qualquer resposta podia ser perigosa. Ele aproximou-se, abriu a gaveta com força e começou a remexer nos papéis.
— Não percebo como consegues gastar tanto dinheiro em comida. Achas que somos ricos? — atirou, lançando-me um olhar de desdém.
A minha filha mais nova, a Sofia, entrou na cozinha nesse momento. Tinha apenas oito anos, mas já sabia ler o silêncio pesado entre nós. Fingiu procurar um copo de água e saiu rapidamente, como quem foge de uma tempestade iminente.
No início, Rui era diferente. Conhecemo-nos na faculdade em Coimbra. Ele era divertido, ambicioso, fazia-me rir. Eu sonhava ser professora de literatura, ele queria abrir um negócio próprio. Casámos cedo, cheios de planos e promessas. Mas depois do nascimento do nosso primeiro filho, o Tomás, tudo mudou.
Rui perdeu o emprego numa empresa de informática e decidiu abrir uma loja de informática em Aveiro. No início, parecia uma boa ideia. Mas os negócios não correram bem e ele tornou-se cada vez mais amargo. Começou a controlar cada cêntimo que entrava e saía da casa. Eu deixei de trabalhar para cuidar dos miúdos e ele passou a dar-me uma mesada rigorosa. O cartão multibanco era só dele. Até para comprar sapatos para as crianças tinha de lhe pedir autorização.
As discussões começaram a ser diárias. Pequenas coisas — um pacote de bolachas extra, um brinquedo barato — eram motivo para acusações e gritos. Eu tentava proteger os miúdos, inventava desculpas para justificar o comportamento do pai. Mas eles viam tudo.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as contas da luz, sentei-me na varanda com uma manta sobre os ombros. O frio entrava-me nos ossos, mas era melhor do que enfrentar o olhar duro do Rui na sala. Olhei para as luzes da cidade e perguntei-me: “Como é que cheguei aqui? Onde ficou aquela Mariana cheia de sonhos?”
A minha mãe sempre me dizia: “Aguenta, filha. O casamento é assim mesmo.” Mas eu sentia-me cada vez mais pequena, mais invisível. Comecei a escrever num caderno escondido no fundo da gaveta da roupa interior. Ali desabafava tudo: o medo, a raiva, a tristeza.
Certa manhã, enquanto arrumava o quarto do Tomás, encontrei um desenho dele: uma família desenhada a lápis, todos juntos à mesa — menos eu, que estava desenhada num canto da folha, sozinha. O coração apertou-se-me no peito.
— Tomás, porque é que a mãe está sozinha no desenho? — perguntei-lhe baixinho.
Ele encolheu os ombros e murmurou:
— Porque tu estás sempre triste.
Chorei em silêncio nessa noite. Percebi que já não conseguia esconder dos meus filhos aquilo que eu própria tentava negar: eu estava presa.
O Rui começou a chegar mais tarde a casa. Dizia que era por causa do trabalho, mas eu sabia que passava horas no café com amigos. Quando chegava, queria tudo pronto: jantar quente, crianças caladas, casa impecável. Qualquer falha era motivo para críticas.
Um dia, decidi procurar trabalho às escondidas. Enviei currículos para escolas e centros de explicações em Aveiro e Ílhavo. Tinha medo que ele descobrisse — sabia que seria o caos — mas precisava desesperadamente de sentir que ainda era alguém para além de “a mulher do Rui”.
Recebi uma resposta positiva de um centro de estudos local. Fui à entrevista sem dizer nada a ninguém. Quando entrei na sala, senti-me outra vez viva: falaram comigo com respeito, perguntaram-me pelos meus sonhos e experiências.
Quando cheguei a casa nesse dia, Rui estava à minha espera na sala.
— Onde estiveste? — perguntou seco.
— Fui dar uma volta — menti.
Ele não acreditou. Pegou no meu telemóvel e começou a vasculhar as mensagens.
— Achas que sou parvo? Andas a esconder alguma coisa? — gritou.
Nessa noite dormi com os miúdos no quarto deles. O medo já não era só meu; era deles também.
No dia seguinte liguei à minha irmã Ana. Ela vivia em Lisboa e sempre me dizia para sair dali.
— Mariana, tu não tens de viver assim! Vem para cá com os miúdos! — insistiu ela ao telefone.
Mas eu hesitava. Como ia começar do zero? Como ia tirar os meus filhos da escola? E se Rui ficasse ainda mais agressivo?
As semanas passaram e comecei a trabalhar no centro de estudos à tarde. O pouco dinheiro que ganhava escondia numa caixa de bolachas vazia no fundo do armário da despensa. Era pouco, mas era meu.
Um sábado à noite, Rui encontrou a caixa enquanto procurava arroz para o jantar.
— O que é isto? Andas a roubar-me? — berrou ele, atirando a caixa contra a parede.
Os miúdos choraram assustados. Eu tremia dos pés à cabeça.
— Não estou a roubar-te nada! É o meu ordenado! — gritei-lhe pela primeira vez em anos.
Ele aproximou-se demasiado depressa e senti o bafo dele na cara.
— Nesta casa mando eu! — cuspiu ele antes de sair porta fora.
Nessa noite tomei uma decisão: não podia continuar ali. Liguei à Ana e combinei tudo para fugir na semana seguinte.
Na véspera da partida, sentei-me com os meus filhos na cama deles.
— Vamos mudar de casa por uns tempos — disse-lhes baixinho. — Vai ser difícil no início, mas vamos ficar juntos e seguros.
O Tomás abraçou-me com força. A Sofia chorou baixinho mas não fez perguntas.
Na manhã seguinte saímos cedo, antes do Rui acordar. Levei apenas uma mala com roupa e os cadernos dos miúdos. A Ana esperava-nos na estação de comboios em Aveiro.
Quando o comboio arrancou senti um misto de medo e alívio. Olhei pela janela para trás e vi a cidade a desaparecer ao longe. Não sabia como ia ser o futuro — se ia conseguir arranjar trabalho suficiente em Lisboa, se ia conseguir pagar uma renda sozinha… Mas pela primeira vez em muitos anos senti esperança.
Hoje vivo num pequeno apartamento com os meus filhos em Benfica. Trabalho num colégio privado como professora auxiliar e dou explicações ao final do dia. Não é fácil; há noites em que choro sozinha na cozinha porque o dinheiro não chega para tudo ou porque sinto falta da minha antiga vida — ou melhor, daquilo que eu sonhei que ela fosse.
O Rui tentou ameaçar-me ao telefone nos primeiros meses; depois cansou-se quando percebeu que eu não ia voltar atrás. Os miúdos ainda perguntam pelo pai às vezes, mas estão mais tranquilos agora.
Às vezes olho para mim ao espelho e quase não me reconheço: há rugas novas no rosto e o cabelo está mais grisalho… mas os olhos brilham outra vez.
Pergunto-me muitas noites: quantas mulheres vivem presas em prisões invisíveis como eu vivi? Quantas têm coragem para fugir? E vocês… ficariam ou fugiriam?