A minha filha de marca, eu de feira: sou mesmo má mãe?

— Mãe, não podes mesmo vir buscar-me à escola hoje? — A voz da Matilde, do outro lado da linha, soava tensa, quase envergonhada.

Fiquei em silêncio por um segundo, o telemóvel a tremer na minha mão. Olhei para o meu reflexo na montra do café: cabelo apanhado à pressa, casaco de ganga gasto, calças de fato de treino compradas na feira de Carcavelos. O contraste com a imagem da Matilde, que me vinha sempre à cabeça — blazer branco imaculado, ténis de marca, mochila Versace — era gritante. Engoli em seco.

— Posso, claro que posso. Porquê? — tentei soar natural.

— Não é nada… só… esquece. — Ela desligou antes que eu pudesse insistir.

Fiquei ali sentada, a olhar para o café frio à minha frente. Oiço as conversas das outras mães à volta: “O Tomás vai para Londres estudar”, “A Leonor já tem estágio na Deloitte”. Sinto-me pequena, deslocada. Não era assim que imaginei a maternidade.

Quando a Matilde nasceu, jurei a mim mesma que ela teria tudo o que eu nunca tive. O pai dela, o Rui, saiu de casa quando ela tinha três anos. Desde então, fui mãe e pai, trabalhando em dois empregos para pagar a renda e garantir que nada lhe faltava. Roupa de marca? Só em saldos ou quando conseguia um extra a limpar escritórios ao fim de semana. Mas para ela, fazia tudo.

Lembro-me do primeiro dia em que ela pediu uns ténis Nike iguais aos das colegas. O preço era obsceno para mim, mas vi nos olhos dela aquele brilho — o desejo de pertencer. Comprei-os. E assim começou a escalada: mochila de marca, casacos caros, telemóvel novo. A Matilde crescia rodeada de miúdos que nunca souberam o que era contar moedas para comprar um gelado.

Mas eu? Eu continuava igual. Não havia dinheiro para mim. O meu guarda-roupa era feito de peças da feira, ofertas das vizinhas ou achados no OLX. E cada vez que ia buscar a Matilde à escola, sentia os olhares das outras mães — algumas com sorrisos condescendentes, outras com desprezo aberto.

Uma tarde, ao chegar a casa depois do trabalho, encontrei a Matilde sentada no sofá, olhos vermelhos.

— O que se passa? — perguntei, sentando-me ao lado dela.

Ela hesitou antes de responder:

— Hoje gozaram comigo por tua causa.

O chão fugiu-me dos pés.

— Como assim?

— Disseram que tu pareces uma sem-abrigo quando vais buscar-me. Que não percebem como é que eu ando sempre tão bem vestida e tu… assim.

As palavras dela eram facas. Senti vergonha — não dela, mas de mim mesma. Tinha falhado? Tinha feito tudo errado?

— Desculpa, filha… — murmurei.

Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos:

— Eu só queria ser igual às outras pessoas. Não quero que gozem contigo nem comigo.

Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto minúsculo e pensei em tudo o que tinha sacrificado por ela. E agora? Agora era eu a fonte da vergonha dela?

No dia seguinte, liguei à minha mãe. A avó da Matilde sempre foi dura comigo.

— Tu é que escolheste esse caminho — disse ela sem rodeios. — Sempre quiseste dar-lhe tudo sem pensar em ti. Agora vês o resultado.

— Mas o que é que eu podia fazer? Queria que ela tivesse oportunidades…

— Oportunidades não vêm de roupa cara. Vêm de valores. E tu estás a ensinar-lhe o quê?

Desliguei sem resposta. Passei o resto do dia a remoer aquelas palavras.

No fim-de-semana seguinte, fui ao shopping com a Matilde. Ela queria um vestido novo para uma festa de anos.

— Mãe, podes esperar aqui? — pediu ela à porta da loja.

— Porquê? — perguntei, magoada.

— É só… prefiro ir sozinha.

Vi-a desaparecer entre os cabides coloridos e senti-me invisível. Sentei-me num banco e tentei não chorar.

Quando voltámos para casa, tentei falar com ela:

— Matilde… achas que tenho vergonha de ti?

Ela ficou calada durante um tempo.

— Não sei… Às vezes parece que és tu que tens vergonha de ti própria.

As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Será que era verdade? Será que me escondia atrás das roupas velhas porque achava que não merecia mais?

Na escola começaram os boatos: “A mãe da Matilde anda sempre mal vestida”, “Deve ser pobre”. Os pais das amigas começaram a afastar-se. A Matilde fechou-se ainda mais no seu mundo de redes sociais e selfies com filtros.

Uma noite ouvi-a chorar no quarto. Entrei devagarinho e sentei-me na cama dela.

— Filha… desculpa se te estou a magoar sem querer.

Ela abraçou-me com força:

— Eu só queria ser normal…

Chorámos juntas nessa noite. Pela primeira vez em anos senti-me próxima dela — mas também percebi o abismo entre nós.

No trabalho comecei a ouvir comentários:

— A tua filha anda sempre tão arranjada! Como consegues?

Sorria e encolhia os ombros. Ninguém sabia dos sacrifícios: das noites sem jantar para poder comprar-lhe aquele casaco; das horas extra; das contas por pagar.

Um dia recebi uma mensagem da diretora da escola: queriam falar comigo sobre o comportamento da Matilde. Fui lá cheia de medo.

— A sua filha tem tido dificuldades em integrar-se — disse-me a diretora. — Nota-se que está muito preocupada com a aparência e com o que os outros pensam dela.

Senti um nó na garganta:

— Eu só queria protegê-la…

A diretora olhou-me nos olhos:

— Às vezes proteger é ensinar a aceitar quem somos.

Saí da escola com lágrimas nos olhos. Pela primeira vez questionei tudo: teria sido melhor mostrar-lhe orgulho nas minhas origens? Ensinar-lhe a valorizar o esforço em vez das aparências?

Nessa noite sentei-me com ela à mesa da cozinha:

— Matilde… amanhã vais comigo à feira de Carcavelos.

Ela olhou para mim como se eu estivesse louca:

— Para quê?

— Para veres onde compro as minhas roupas. Para perceberes quem eu sou.

No dia seguinte andámos pelas bancas cheias de cores e cheiros intensos. Mostrei-lhe como escolher peças boas no meio do caos, como negociar preços, como rir dos pequenos azares do dia-a-dia.

No fim do dia comprámos duas camisolas iguais — uma para cada uma. Rimo-nos juntas pela primeira vez em muito tempo.

Na segunda-feira fui buscá-la à escola com a camisola nova da feira vestida. Ela saiu do portão com um sorriso tímido e deu-me um abraço apertado à frente de toda a gente.

Nesse momento percebi: talvez nunca consiga dar-lhe tudo o que sonhei. Mas posso dar-lhe orgulho nas nossas raízes, força para enfrentar os olhares dos outros e coragem para ser diferente.

Ainda hoje me pergunto: será que fiz bem? Será que sou mesmo uma má mãe por não conseguir dar-lhe tudo? Ou será que ser mãe é isto — errar, tentar outra vez e amar apesar de tudo?