Metade da Casa Para o Meio-Irmão: A Decisão do Meu Pai Que Mudou Tudo
— Não podes estar a falar a sério, pai! — A minha voz saiu trémula, quase um sussurro, mas carregada de uma raiva que me surpreendeu. O meu pai olhou-me nos olhos, com aquela expressão cansada que ultimamente parecia nunca abandonar-lhe o rosto. — Mariana, ouve-me. Não é uma questão de justiça, é uma questão de consciência. O Miguel também é meu filho.
Miguel. O nome soava estranho na boca do meu pai, como se não pertencesse à nossa casa, à nossa história. Cresci a ouvir falar dele como quem fala de um parente distante, alguém que existia algures em Lisboa, fruto de um casamento que o meu pai raramente mencionava. Só o vi uma vez, num Natal constrangedor em que ele apareceu com a mãe e ficou sentado no sofá, calado, enquanto eu tentava adivinhar se tínhamos alguma coisa em comum além do apelido.
Agora, depois de anos a viver sob o peso das expectativas dos meus pais — ser a melhor aluna, a filha exemplar, aquela que nunca dava problemas —, descubro que metade da casa onde cresci vai para um estranho. Senti o chão fugir-me dos pés. A minha mãe estava sentada à mesa da cozinha, as mãos entrelaçadas com força. Não disse nada. O silêncio dela doía mais do que qualquer palavra.
— E eu? — perguntei, quase sem voz. — Depois de tudo o que fiz por esta família? Depois de tudo o que abdiquei?
O meu pai suspirou. — Mariana, tu sempre tiveste tudo. O Miguel não teve nada disto. Não teve esta casa, não teve esta família…
— Mas ele nunca quis saber! — interrompi-o, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair. — Nunca ligou, nunca veio cá! Eu é que estive aqui todos os dias!
O silêncio instalou-se outra vez. A minha mãe levantou-se devagar e saiu da cozinha sem olhar para mim. Fiquei ali parada, com o coração aos pulos e uma raiva surda a crescer dentro de mim.
Naquela noite não consegui dormir. Fiquei deitada na cama a olhar para o teto, a recordar todos os momentos em que tentei agradar ao meu pai: os trabalhos de casa feitos à pressa para poder ajudá-lo no jardim; as medalhas de natação alinhadas na prateleira; as vezes em que escondi as minhas próprias dores para não preocupar ninguém. E agora… tudo isso parecia não valer nada.
No dia seguinte, fui trabalhar como um autómato. Os colegas notaram o meu ar ausente, mas ninguém perguntou nada. Em Portugal fala-se pouco dos dramas familiares — são coisas para resolver entre quatro paredes. Mas eu sentia-me prestes a explodir.
À hora de almoço liguei à minha melhor amiga, a Sofia. — Preciso de falar contigo — disse-lhe, sem rodeios.
Encontrámo-nos num café perto do trabalho. Mal me sentei, desatei a chorar.
— Ele vai dar metade da casa ao Miguel! — soluçava eu. — Ao Miguel! Achas isto normal?
A Sofia ouviu-me em silêncio, segurando-me na mão por baixo da mesa.
— Olha, Mariana… Eu percebo que te sintas traída. Mas talvez o teu pai esteja só a tentar corrigir erros antigos. Sabes como são os homens da geração dele…
— Corrigir erros? E os meus sentimentos? E tudo aquilo por que passei?
Ela encolheu os ombros. — Não estou a dizer que é justo. Só acho que devias falar com ele outra vez. Perguntar-lhe o que sente realmente.
Voltei para casa determinada a ter essa conversa. Encontrei o meu pai no quintal, a regar as roseiras da minha mãe.
— Pai… — comecei, hesitante. — Preciso mesmo de perceber porque é que estás a fazer isto.
Ele pousou a mangueira e olhou para mim com uma tristeza antiga nos olhos.
— Sabes, Mariana… Quando me separei da mãe do Miguel, prometi-lhe que nunca lhe faltaria nada. Mas falhei. Afastei-me dele porque era mais fácil assim… E agora sinto que tenho de lhe dar alguma coisa antes de partir.
— Mas e eu? — insisti. — Não sentes que me estás a magoar?
Ele passou a mão pelo cabelo grisalho e suspirou.
— Sinto… Mas tu és forte. Sempre foste. O Miguel… não sei se aguentaria mais uma rejeição.
Fiquei ali parada, sem saber se gritava ou chorava. Era como se toda a minha infância tivesse sido posta em causa por uma decisão tomada à porta da morte.
Nos dias seguintes, o ambiente em casa tornou-se insuportável. A minha mãe andava calada, os jantares eram feitos em silêncio e eu evitava cruzar-me com o meu pai sempre que podia.
Uma noite ouvi-os discutir no quarto:
— Não podes fazer isto à Mariana! — sussurrava a minha mãe.
— Não posso continuar a viver com este peso na consciência — respondia ele.
Senti-me pequena outra vez, como quando era criança e ouvia os meus pais discutirem baixinho para eu não perceber.
O tempo foi passando e comecei a evitar ir a casa dos meus pais ao fim de semana. Preferia ficar no meu pequeno apartamento em Almada, longe daquele ambiente pesado. Mas cada vez que olhava para as paredes nuas do meu quarto sentia uma saudade imensa da casa onde cresci — das tardes de verão no quintal, dos cheiros da comida da minha mãe, do som das gargalhadas do meu pai antes de tudo isto acontecer.
Um dia recebi uma mensagem inesperada: era do Miguel.
“Olá Mariana. Sei que isto é estranho mas gostava de falar contigo.”
Fiquei paralisada durante minutos antes de responder. Marcámos um encontro num café discreto no centro de Lisboa.
Quando o vi entrar percebi como éramos parecidos: o mesmo nariz torto do nosso pai, os olhos castanhos escuros cheios de perguntas sem resposta.
— Obrigado por teres vindo — disse ele, nervoso.
— Não sei bem porque vim — admiti.
Ele sorriu tristemente.
— Também não sei bem porque estou aqui… Só queria dizer-te que não quero causar problemas na tua vida. Nem sequer sabia desta decisão até há pouco tempo.
Olhei-o nos olhos e vi ali uma tristeza igual à minha.
— Sentes-te parte desta família? — perguntei-lhe.
Ele abanou a cabeça devagar.
— Nunca senti… Acho que nunca vou sentir. Mas também não quero ser responsável por destruir aquilo que tens com o nosso pai.
Ficámos ali sentados em silêncio durante muito tempo. Quando me despedi dele senti um peso estranho no peito: raiva misturada com compaixão.
Voltei para casa e chorei tudo o que tinha para chorar.
Os meses passaram e o meu pai foi ficando mais frágil. Um dia chamou-me ao quarto dele e segurou-me na mão com força.
— Perdoa-me, filha… Só queria fazer as coisas certas antes de partir.
Chorei baixinho ao lado dele até adormecer agarrada à sua mão.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível perdoar uma traição destas? Ou será que o verdadeiro amor está em aceitar as escolhas dos outros mesmo quando nos magoam? Talvez nunca saiba responder… Mas sei que esta história mudou para sempre aquilo que penso sobre família e justiça.