O Vizinho Indesejado: Quando as Fronteiras São Ultrapassadas – Uma História de Confiança e Desilusão

— Outra vez, António? — perguntei, tentando manter a voz firme enquanto segurava a porta entreaberta. O cheiro do seu tabaco barato já invadia o corredor do prédio, misturando-se com o aroma do meu jantar que fervia ao lume.

Ele sorriu, aquele sorriso torto que me fazia estremecer desde o primeiro dia em que se mudou para o apartamento ao lado. — Só vim pedir um pouco de sal, Dona Teresa. Esqueci-me de comprar outra vez… — disse, olhando descaradamente para dentro da minha casa, como se procurasse algo mais do que tempero.

Fechei a porta atrás dele assim que saiu, sentindo o coração bater mais rápido do que devia. Não era a primeira vez. Primeiro foi o sal, depois açúcar, depois pediu-me para receber uma encomenda porque ia estar fora. Pequenas coisas, pensei. Coisas normais entre vizinhos. Mas quando dei por mim, António já sabia os meus horários, quando o meu filho chegava da escola, quando o meu marido estava fora em trabalho.

A minha mãe sempre me disse: “Teresa, não abras demasiado a porta do teu coração nem da tua casa.” Nunca dei muita importância. Cresci em Almada, num bairro onde todos se conheciam e partilhavam tudo — desde as sopas até às tristezas. Mas Lisboa era diferente. Aqui, as paredes são finas e os segredos escorrem pelos corredores.

Naquela noite, sentei-me à mesa com o meu marido, Rui. Ele olhou para mim com aquela expressão cansada de quem já não quer ouvir falar do mesmo assunto.

— Teresa, estás a exagerar. O homem é só um pouco carente, não tem família cá… — disse ele, enquanto mexia no arroz.

— Rui, ele sabe tudo sobre nós! Até comentou sobre o casaco novo do Miguel! Como é que ele sabe disso? — insisti, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.

Rui suspirou e largou os talheres. — Se te incomoda assim tanto, fala com ele. Mas não faças disto uma guerra.

Falar com António? Só de pensar nisso sentia um nó no estômago. Mas sabia que não podia continuar assim. Passei a noite em claro, ouvindo cada passo no corredor, cada porta a ranger.

No dia seguinte, ao regressar do trabalho, encontrei António à minha espera junto ao elevador.

— Teresa! Preciso de um favorzinho… — começou ele, aproximando-se demais.

— António, acho que já chega — interrompi-o, tentando soar mais firme do que me sentia. — Gosto de ajudar, mas preciso de algum espaço. Não posso estar sempre disponível.

Ele ficou calado por uns segundos, o sorriso desaparecendo devagarinho. — Não sabia que estava a incomodar… — murmurou, olhando para os sapatos.

Senti-me mal por um instante. Talvez Rui tivesse razão. Talvez eu estivesse a ser dura demais. Mas aquela sensação de invasão não me largava.

Nessa noite, Miguel entrou no quarto com os olhos arregalados.

— Mãe… o Sr. António perguntou-me se eu ia ao futebol amanhã… Como é que ele sabe? — perguntou o meu filho de dez anos.

O sangue gelou-me nas veias. Fui até à sala e liguei para Rui.

— Isto passou dos limites! Ele anda a perguntar coisas ao Miguel! — gritei ao telefone.

Rui tentou acalmar-me, mas eu já não ouvia nada. Passei a noite a pensar em todas as vezes que deixei António entrar na minha casa, nas conversas triviais que agora pareciam interrogatórios disfarçados.

No dia seguinte, decidi falar com a vizinha do terceiro andar, Dona Lurdes. Ela vivia ali há mais tempo e talvez soubesse algo sobre António.

— Olhe menina Teresa… esse homem não é flor que se cheire. Já teve problemas noutros prédios — sussurrou ela, olhando à volta antes de continuar. — Dizem que gosta de saber tudo sobre toda a gente… e depois espalha boatos.

Senti um frio percorrer-me as costas. Era isso! Não era só curiosidade; era intriga.

Comecei a reparar em olhares estranhos no prédio. A vizinha do rés-do-chão deixou de me cumprimentar. O senhor Joaquim passou por mim sem dizer bom dia. O que estaria António a dizer sobre mim?

Uma tarde, ao chegar a casa mais cedo do trabalho, encontrei António à porta do meu apartamento, a tentar ouvir pelo buraco da fechadura.

— O que está a fazer?! — gritei, sentindo uma raiva surda subir-me à garganta.

Ele recuou assustado, mas rapidamente recuperou o ar de vítima.

— Pensei que tinha ouvido barulho… Queria ver se estava tudo bem… — justificou-se.

Fechei a porta na cara dele e sentei-me no chão da entrada a chorar baixinho. Senti-me impotente e traída pela minha própria bondade.

Rui chegou tarde nesse dia e encontrou-me ainda sentada no chão.

— Isto não pode continuar assim — disse ele finalmente. — Vou falar com o administrador do prédio.

Mas antes disso aconteceram coisas ainda piores. Uma manhã acordei com mensagens anónimas no telemóvel: “Cuidado com quem deixas entrar na tua casa.” “O teu marido não está sempre contigo…”

Mostrei as mensagens ao Rui e ele ficou pálido.

— Isto é grave… Temos de ir à polícia — disse ele finalmente.

Fomos à esquadra e fizemos participação. Os polícias foram cordiais mas disseram-nos que sem provas concretas pouco podiam fazer.

Os dias seguintes foram um inferno. António continuava a cruzar-se comigo nos corredores com aquele sorriso cínico. Os vizinhos olhavam-me de lado. Miguel começou a ter pesadelos e recusava-se a sair sozinho para ir brincar ao parque.

Uma noite ouvi barulho na varanda. Corri para lá e vi António do lado de fora, no seu próprio apartamento, mas encostado à divisória como se tentasse ouvir ou ver algo através das persianas.

Foi aí que decidi: tinha de sair dali. Fosse como fosse.

Começámos a procurar casa noutra zona da cidade. Quando finalmente encontrámos um apartamento pequeno mas acolhedor em Benfica, senti um alívio imenso ao fechar a porta atrás de mim pela primeira vez.

Mas as cicatrizes ficaram. Ainda hoje olho duas vezes antes de abrir a porta quando alguém toca à campainha. Ainda hoje desconfio dos sorrisos fáceis dos vizinhos demasiado curiosos.

Às vezes pergunto-me: será que fui ingénua? Ou será que hoje em dia já não podemos confiar em ninguém? E vocês? Já passaram por algo assim? Como lidaram com isso?