Quando o Passado Bate à Porta: Um Dia que Mudou Tudo
— Porquê agora, Miguel? — sussurrei para o telefone, tentando não acordar os vizinhos através das paredes finas do meu apartamento em Benfica. O relógio marcava 3h17 da manhã. O som estridente do telemóvel tinha-me arrancado de um sono inquieto, e a voz do meu ex-marido, do outro lado da linha, soava como um eco distante de uma vida que já não era minha.
— Preciso de falar contigo, Teresa. É sobre a Mariana — disse ele, a voz embargada, quase suplicante.
O nome da nossa filha caiu como uma pedra no meu peito. Mariana, a nossa menina, agora mulher feita, mas tão distante de mim como se vivesse noutro continente. Desde o divórcio, há cinco anos, que tudo entre nós se tornou difícil. Ela ficou com ele, escolheu o pai, e eu fiquei com o silêncio da casa e as memórias espalhadas pelos cantos.
— O que aconteceu? — perguntei, sentindo o coração acelerar.
— Ela saiu de casa ontem à noite e não voltou. Não atende o telefone. Estou desesperado, Teresa. Não sei mais o que fazer.
Sentei-me na beira da cama, as mãos a tremer. A minha filha desaparecida. O medo misturava-se com uma raiva antiga — aquela que guardava desde o dia em que Miguel me trocou por outra mulher, aquela que me fazia sentir sempre a segunda escolha.
— Achas que ela viria ter comigo? — perguntei, tentando manter a voz firme.
— Não sei… Talvez. Vocês não falam há meses. Mas és a mãe dela — respondeu ele, quase num sussurro.
Desliguei sem dizer adeus. Fiquei ali sentada, a olhar para o vazio do quarto. As paredes estavam cobertas de fotografias antigas: Mariana em criança, eu e Miguel sorridentes num verão esquecido em Sesimbra. Tudo parecia tão distante agora.
Levantei-me e fui até à sala. O sofá estava coberto de roupas por dobrar — nunca tive grande jeito para manter a casa arrumada desde que fiquei sozinha. Sentei-me e tentei ligar à Mariana. Caixa de mensagens. Tentei outra vez. Nada.
A madrugada arrastou-se lenta. Fui tomada por lembranças: as discussões com Mariana quando ela tinha 17 anos e queria sair até tarde; as vezes em que tentei protegê-la do mundo e ela só via em mim uma inimiga; o dia em que me disse, olhos nos olhos, “Prefiro viver com o pai”.
O sol começou a nascer quando ouvi uma chave na porta. O coração quase me saltou do peito.
— Mariana? — chamei, levantando-me de um salto.
A porta abriu-se devagar e lá estava ela: cabelo despenteado, olhos vermelhos de chorar.
— Mãe… — murmurou, antes de desabar nos meus braços.
Ficámos ali abraçadas durante minutos que pareceram horas. Senti o cheiro do seu cabelo, misturado com lágrimas e perfume barato. O tempo parou.
— O que aconteceu? — perguntei baixinho.
Ela afastou-se ligeiramente e olhou-me nos olhos.
— Não aguento mais aquela casa. O pai só pensa na Ana e no bebé novo. Sinto-me invisível — confessou, a voz embargada.
Ouvindo aquilo, uma parte de mim sentiu uma pontada de satisfação mesquinha — afinal, não era só comigo que Miguel falhava como pai. Mas logo depois veio a culpa: Mariana era minha filha, estava magoada e perdida.
— Podes ficar aqui o tempo que quiseres — disse-lhe, acariciando-lhe o rosto.
Ela sorriu timidamente e foi tomar banho. Enquanto ouvia a água correr, sentei-me à mesa da cozinha e preparei duas chávenas de café forte. A rotina simples acalmou-me por momentos.
Quando Mariana voltou à cozinha, sentou-se à minha frente em silêncio. Olhou para mim como quem procura respostas para perguntas antigas.
— Mãe… Porque é que tu e o pai se separaram mesmo? — perguntou de repente.
Engoli em seco. Nunca lhe tinha contado toda a verdade. Sempre achei que era melhor proteger-lhe a imagem do pai.
— As pessoas mudam, filha. Às vezes deixam de se reconhecer uma à outra — respondi, evitando os detalhes dolorosos da traição.
Ela abanou a cabeça.
— Eu só queria uma família normal… — murmurou.
Senti um nó na garganta. Quantas vezes desejei o mesmo? Quantas noites chorei sozinha na sala escura?
O dia passou devagar. Mariana ficou no sofá quase todo o tempo, agarrada ao telemóvel mas sem vontade de falar com ninguém. Eu tentei ocupar-me com tarefas domésticas: lavei roupa, limpei o pó das prateleiras cheias de livros antigos do meu pai, cozinhei um arroz de pato como ela gostava quando era pequena.
Ao fim da tarde, Miguel ligou outra vez.
— Ela está aí? — perguntou sem rodeios.
— Está — respondi seca.
— Podemos falar todos juntos? — insistiu ele.
Olhei para Mariana. Ela abanou a cabeça negativamente.
— Não agora — disse-lhe eu. — Ela precisa de tempo.
Miguel suspirou do outro lado da linha.
— Diz-lhe que gosto dela… E que estou preocupado.
Desliguei sem responder. Senti-me dividida entre a raiva antiga e uma compaixão inesperada pelo homem com quem partilhei metade da minha vida.
À noite, sentei-me ao lado da Mariana no sofá. Ela encostou-se ao meu ombro como fazia quando era criança.
— Achas que algum dia vou ser feliz? — perguntou baixinho.
A pergunta ficou no ar como uma nuvem pesada. Pensei em todas as vezes em que me fizera essa mesma pergunta nos últimos anos: depois do divórcio, nas noites solitárias em que só tinha o som do frigorífico para me fazer companhia; nos jantares de Natal em que éramos só duas à mesa; nos aniversários esquecidos pelos amigos antigos que escolheram lados depois da separação.
— Acho que sim… Mas às vezes demora muito tempo — respondi finalmente, apertando-lhe a mão.
Ela sorriu tristemente e fechou os olhos. Fiquei ali sentada ao lado dela até adormecer.
Naquela noite não dormi quase nada. Fiquei a pensar em tudo o que perdera: o casamento falhado, os anos desperdiçados numa relação onde já não havia amor; a distância crescente entre mim e a minha filha; os sonhos adiados por causa dos outros. Mas também pensei no que ainda podia ganhar: uma nova relação com Mariana; talvez até uma nova vida para mim própria, se tivesse coragem para recomeçar.
Na manhã seguinte, Mariana acordou mais leve. Tomámos pequeno-almoço juntas pela primeira vez em anos sem discussões nem silêncios constrangedores. Ela falou-me dos seus medos, dos ciúmes do irmão bebé, da sensação de não pertencer a lado nenhum.
Ouvi-a com atenção renovada. Pela primeira vez em muito tempo senti-me mãe outra vez — não apenas uma mulher sozinha num apartamento pequeno em Lisboa.
Quando Mariana saiu para ir à universidade, fiquei sozinha na cozinha com uma chávena de café frio nas mãos. Olhei pela janela para as ruas movimentadas lá fora e perguntei-me: será que ainda vou conseguir ser feliz depois de tudo isto? Será possível reconstruir uma família feita de pedaços partidos?
E vocês? Já sentiram que um único dia pode mudar tudo na vossa vida? O que fariam no meu lugar?