Quando a Verdade Veio do Outro Lado da Porta: A Traição de Ivan
— Ana, preciso falar contigo. Agora. — A voz da Maria, a minha vizinha do terceiro esquerdo, tremia enquanto me agarrava pelo braço à porta do prédio. O cheiro do seu perfume misturava-se com o aroma do café acabado de fazer que vinha do rés-do-chão. O meu coração acelerou sem razão aparente, ou talvez já soubesse, lá no fundo, que nada seria igual depois daquele momento.
— O que se passa, Maria? — perguntei, tentando sorrir para disfarçar o nervosismo.
Ela olhou para os lados, certificando-se de que ninguém nos ouvia. — É sobre o Ivan… Vi-o ontem à noite. Não estava sozinho.
O chão fugiu-me dos pés. Senti as pernas fraquejarem e apoiei-me na parede fria do átrio. — O que queres dizer com isso?
— Ana, desculpa… mas ele estava com outra mulher. Vi-os no carro dele, ali ao pé do parque. Não consegui dormir a noite toda a pensar se devia dizer-te ou não.
As palavras dela ecoaram na minha cabeça durante horas. Subi as escadas como um fantasma, cada degrau mais pesado que o anterior. Entrei em casa e fechei a porta devagarinho, como se pudesse impedir que a verdade entrasse comigo. O Ivan estava na sala, deitado no sofá com o telemóvel na mão.
— Olá, amor — disse ele, sem desviar os olhos do ecrã.
Sentei-me ao lado dele e tentei sorrir. — Tiveste um bom dia?
Ele encolheu os ombros. — O costume. Muito trabalho no escritório.
Olhei para ele, procurando sinais: um cheiro estranho, uma marca de batom, qualquer coisa fora do normal. Mas não havia nada. Só aquele vazio entre nós que eu nunca tinha sentido antes.
Durante dias vivi num limbo. Observava cada movimento do Ivan: as mensagens que recebia e apagava rapidamente, as chamadas que atendia na varanda, os sorrisos forçados ao jantar. Comecei a duvidar de tudo — até de mim própria.
Uma noite, depois de ele adormecer, peguei no telemóvel dele. As mãos tremiam tanto que quase deixei cair o aparelho. Não havia mensagens suspeitas, mas havia uma chamada recente para um número desconhecido. O nome guardado era apenas “Marta”.
No dia seguinte, não aguentei mais. Esperei que ele saísse para o trabalho e fui bater à porta da Maria.
— Preciso de falar contigo — disse-lhe assim que abriu a porta.
Ela fez-me entrar e sentámo-nos à mesa da cozinha. — Desculpa ter-te dito aquilo… Não queria meter-me na vossa vida.
— Fizeste bem — respondi, com lágrimas nos olhos. — Preciso de saber quem é ela.
Maria hesitou antes de responder. — Acho que é uma colega dele do escritório. Já os vi juntos mais do que uma vez.
O mundo desabou sobre mim. Lembrei-me das vezes em que o Ivan chegava tarde a casa e dizia que tinha ficado a trabalhar até mais tarde com a equipa. Lembrei-me das discussões por coisas pequenas: o jantar queimado, as contas por pagar, o silêncio à mesa.
Nessa noite, quando o Ivan chegou a casa, sentei-me em frente dele e olhei-o nos olhos.
— Temos de conversar.
Ele largou o casaco no sofá e suspirou. — O que foi agora?
— Sabes perfeitamente o que é. Quem é a Marta?
O silêncio dele foi pior do que qualquer resposta. Baixou os olhos e passou as mãos pelo cabelo.
— Ana… não queria magoar-te.
— Mas magoaste! — gritei, sentindo as lágrimas escorrerem pelo rosto. — Como pudeste? Depois de tudo o que passámos juntos?
Ele tentou aproximar-se de mim, mas recuei.
— Não foi planeado… As coisas entre nós já não estavam bem há muito tempo.
— E achaste que trair-me era a solução? — perguntei, a voz embargada pela dor.
Ele não respondeu. Ficou ali parado, como se não soubesse o que fazer com as próprias mãos.
Os dias seguintes foram um tormento. A família dele ligava-me todos os dias: a mãe do Ivan chorava ao telefone, pedindo-me para não desistir do casamento; o pai dele dizia que “os homens são assim mesmo” e que eu devia perdoar. A minha mãe apareceu em minha casa com um bolo de laranja e um discurso ensaiado sobre como “as mulheres portuguesas são fortes” e “aguentam tudo pela família”.
Mas eu não queria ser forte nem aguentar tudo. Queria apenas entender onde tinha falhado. Passei noites em claro a rever mentalmente cada momento dos últimos anos: o nascimento da nossa filha Leonor, as férias em Vila Nova de Milfontes, as discussões sobre dinheiro, as promessas feitas e nunca cumpridas.
A Leonor percebeu logo que algo estava errado. Uma noite entrou no meu quarto e sentou-se ao meu lado na cama.
— Mamã, porque é que tu e o papá estão sempre tristes?
Abracei-a com força e chorei baixinho para ela não ouvir.
O Ivan tentou pedir desculpa várias vezes. Mandava mensagens durante o dia: “Desculpa”, “Sinto muito”, “Quero tentar outra vez”. Mas eu já não sabia se queria tentar ou se apenas tinha medo de ficar sozinha.
Os amigos começaram a afastar-se: uns porque não sabiam de que lado ficar; outros porque tinham medo de se envolverem no drama alheio. No trabalho andava distraída, cometia erros parvos e chorava na casa de banho durante a pausa para café.
Um dia recebi uma mensagem da Marta: “Desculpa pelo mal que causei. Não sabia que ainda estavam juntos.” Senti raiva dela, mas também pena. No fundo sabia que a culpa era do Ivan — foi ele quem escolheu mentir-me.
A pressão da família aumentava todos os dias. A sogra ligava-me para dizer que “um casamento é para sempre”; a minha mãe dizia-me para pensar na Leonor; até o padre da paróquia me abordou à saída da missa para me lembrar dos votos matrimoniais.
Mas eu já não conseguia respirar naquele ambiente sufocante de expectativas alheias.
Numa tarde chuvosa sentei-me sozinha no café da esquina e escrevi uma carta ao Ivan:
“Ivan,
Não sei quando deixámos de ser nós próprios. Talvez tenha sido nas pequenas coisas: nos silêncios prolongados ao jantar, nas promessas adiadas, nos sonhos esquecidos pelo caminho. Não te odeio, mas também já não te reconheço. Preciso de tempo para mim — para descobrir quem sou sem ti ao meu lado.
Ana”
Deixei a carta em cima da mesa da sala e fui buscar a Leonor à escola. Quando voltei, ele já tinha lido tudo e estava sentado no sofá com os olhos vermelhos.
— Ana…
— Preciso de espaço — disse-lhe calmamente. — Por favor, respeita isso.
Ele acenou com a cabeça e saiu sem dizer mais nada.
Os dias seguintes foram estranhos: um silêncio novo instalou-se em casa, mas era um silêncio meu, só meu. Comecei a redescobrir pequenos prazeres: ler um livro na varanda ao fim da tarde; passear com a Leonor à beira-rio; cozinhar só para mim sem pressa nem obrigação.
A família continuou a pressionar-me para perdoar o Ivan, mas pela primeira vez na vida ignorei todas as vozes à minha volta e ouvi apenas a minha própria vontade.
Hoje olho para trás e percebo que sobrevivi ao pior dos meus medos: ficar sozinha e enfrentar o desconhecido. Ainda dói pensar no Ivan e no que perdemos pelo caminho, mas aprendi que às vezes é preciso perder tudo para nos encontrarmos a nós próprios.
Será que alguma vez conseguimos realmente conhecer quem está ao nosso lado? Ou será que passamos uma vida inteira a acreditar em histórias inventadas só para não enfrentarmos a verdade?