O Meu Marido Tinha um Segredo: Entre a Solidão e o Recomeço

— Não me mintas, Miguel! — gritei, a voz embargada, enquanto ele desviava o olhar, fingindo procurar qualquer coisa no fundo do armário. O silêncio entre nós era tão denso que quase sufocava. O relógio da cozinha marcava 23h17, e eu sabia que, mais uma vez, ele chegava tarde, com desculpas esfarrapadas e um cheiro estranho de noite vivida sem mim.

Durante meses, uma inquietação corroía-me por dentro. O Miguel já não era o mesmo homem com quem casei há dez anos, na pequena igreja de São João, rodeados pela família e amigos. Ele, que sempre foi carinhoso e atento, agora parecia um estranho na nossa casa. O nosso filho, o Tiago, de apenas sete anos, perguntava-me muitas vezes: “A mãe, o pai já não gosta de nós?” Eu respondia com um sorriso forçado, mas por dentro sentia-me a desmoronar.

Tudo começou a mudar quando ele foi promovido no banco. Os horários tornaram-se imprevisíveis, os telefonemas secretos, as mensagens apagadas do telemóvel. A minha mãe, a Dona Lurdes, dizia-me para confiar, mas a minha irmã, a Rita, incitava-me a investigar. “Os homens são todos iguais”, dizia ela, com amargura de quem já tinha passado pelo mesmo.

Uma noite, não aguentei mais. Esperei que ele adormecesse e vasculhei o telemóvel. Nada. Nem uma mensagem suspeita. Mas havia um número que se repetia nas chamadas recentes: um tal de “João da Oficina”. Achei estranho, porque o Miguel nunca foi de se interessar por carros. No dia seguinte, segui-o. O coração batia-me tão forte que temi ser descoberta. Vi-o entrar num prédio antigo, no centro do Porto. Esperei quase uma hora até ele sair, com um sorriso que já não via há meses.

Quando voltou para casa, confrontei-o. “Onde estiveste?” Ele respondeu com evasivas, dizendo que era trabalho. Mas eu sabia que não era verdade. A dúvida corroía-me. Decidi ir mais longe. No sábado seguinte, deixei o Tiago com a minha mãe e fui até ao prédio misterioso. Subi as escadas, sentindo o chão tremer sob os meus pés. No terceiro andar, ouvi vozes. Aproximei-me da porta entreaberta e vi o Miguel… a pintar. Estava rodeado de telas, pincéis e tintas. O João da Oficina era, afinal, o dono do ateliê onde o Miguel se refugiava.

Fiquei ali, imóvel, a observar o homem que julgava conhecer. Ele ria-se com outros artistas, falava de sonhos e cores, de exposições e viagens. Senti uma mistura de alívio e raiva. Afinal, ele não tinha outra mulher. Tinha outra vida. Uma vida onde eu e o Tiago não existíamos.

Voltei para casa em silêncio. Durante dias, não lhe disse nada. Mas a distância entre nós tornou-se insuportável. Uma noite, sentei-me ao lado dele no sofá e perguntei:

— Porque é que nunca me contaste?

Ele olhou-me nos olhos, pela primeira vez em muito tempo.

— Porque tinha medo de te desiludir. Sempre quis pintar, mas achei que não era digno de um homem de família. Achei que ias achar ridículo.

Chorei. Chorei por tudo o que perdemos, por tudo o que não dissemos. O Miguel pediu-me desculpa, mas eu não sabia se conseguia perdoar-lhe. Não por me ter traído com outra mulher, mas por me ter excluído da sua vida.

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. A minha mãe dizia para dar-lhe tempo. A Rita achava que devia sair de casa. O Tiago sentia a tensão e começou a ter pesadelos. Eu própria já não sabia quem era. Passei a questionar tudo: o meu casamento, a minha identidade, os meus sonhos esquecidos.

Uma tarde, fui buscar o Tiago à escola e ele perguntou:

— A mãe, porque é que o pai já não brinca connosco?

Não soube responder. Senti-me pequena, impotente. Decidi procurar ajuda. Marquei uma consulta com uma psicóloga. Pela primeira vez em anos, falei de mim, dos meus medos, das minhas frustrações. Percebi que também eu tinha deixado de viver. Tinha-me perdido na rotina, nos cuidados com a casa, no papel de mãe e esposa.

O Miguel continuava a ir ao ateliê. Um dia, convidou-me para ver uma exposição dos seus quadros. Fui contrariada, mas quando vi as suas obras, percebi o quanto ele precisava daquele espaço. Havia um quadro com uma mulher de costas, a olhar para o mar. Era eu. Senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto.

No regresso a casa, falámos como há muito não fazíamos. Ele pediu-me para tentar compreender. Eu pedi-lhe para não me excluir mais. Decidimos tentar recomeçar, mas sabíamos que nada seria como antes.

A vida não voltou ao normal. Houve dias em que pensei em desistir. Outros em que me senti mais próxima dele do que nunca. O Tiago foi o nosso elo. Começámos a fazer programas a três, a redescobrir pequenos prazeres. Eu própria inscrevi-me num curso de fotografia. Quis voltar a ser alguém para além de mãe e mulher.

A família não compreendeu. A minha mãe achava que era uma fase. A Rita dizia que eu era ingénua por acreditar que as pessoas mudam. Mas eu sabia que precisava de tentar. Não por ele, mas por mim.

Hoje, olho para trás e vejo quanto cresci. O Miguel continua a pintar. Eu fotografo. O Tiago já não tem pesadelos. Ainda há dias difíceis, ainda há silêncios. Mas há também esperança.

Pergunto-me muitas vezes: quantas pessoas vivem vidas secretas dentro do próprio lar? Quantos de nós esquecemos quem somos para agradar aos outros? Talvez nunca tenha havido traição, apenas medo de sermos nós próprios.

E vocês? Já sentiram que perderam uma parte de vocês mesmos para manter uma aparência de felicidade? O que fariam se descobrissem que o maior segredo do vosso companheiro é, afinal, um sonho adormecido?