Quando Ser Pai se Torna Demais: Entre o Amor e o Desespero
— Miguel, não consigo mais! — gritou a Sofia, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto, enquanto embalava o pequeno Tomás nos braços. O choro dele misturava-se com o dela, ecoando pela casa silenciosa, apenas interrompida pelo som da televisão ligada no quarto ao lado, onde a Matilde e o João tentavam adormecer.
Fiquei parado no corredor, com as mãos a tremer. Tinha acabado de chegar do trabalho, exausto, e aquele grito foi como um murro no estômago. Não era a primeira vez que a Sofia desabava assim, mas naquele dia senti que algo tinha mudado. O Tomás tinha apenas três meses, e desde que nasceu que tudo parecia desmoronar à nossa volta.
Lembro-me de quando soubemos que ela estava grávida outra vez. Não era suposto. Já tínhamos dois filhos, uma casa pequena em Almada, contas para pagar e sonhos adiados. Mas a vida não espera pelos nossos planos. A Sofia chorou de alegria e medo ao mesmo tempo. Eu sorri para ela, mas por dentro só conseguia pensar: “Como é que vamos dar conta disto tudo?”
— Miguel, preciso que me ajudes! — insistiu ela, com a voz embargada. — Não sou capaz de fazer isto sozinha!
Aproximei-me devagar, tentando ignorar o cansaço que me pesava nos ombros. Peguei no Tomás, que se acalmou por instantes ao sentir o meu peito. Olhei para a Sofia — os olhos dela estavam vermelhos, as olheiras profundas. Já não era a mulher cheia de energia com quem casei há dez anos. Era uma mãe exausta, perdida entre fraldas sujas e noites mal dormidas.
— Eu sei que está difícil — murmurei, tentando soar calmo. — Mas vamos conseguir, juntos.
Ela abanou a cabeça, descrente.
— Tu não percebes, Miguel! Passo os dias sozinha com eles. Tu chegas tarde, cansado… E eu? Eu já nem sei quem sou!
As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. No trabalho, mal conseguia concentrar-me. O patrão já me tinha chamado à atenção duas vezes por causa dos atrasos e da falta de rendimento. Os colegas olhavam-me de lado, como se adivinhassem que eu estava à beira de um colapso.
Em casa, as discussões tornaram-se rotina. A Matilde começou a fazer birras na escola primária; o João fazia xixi na cama todas as noites. E eu? Eu sentia-me um estranho na minha própria casa.
Uma noite, depois de adormecer o Tomás ao colo, sentei-me no sofá e deixei-me afundar nos meus pensamentos. O silêncio era pesado. A Sofia entrou na sala sem dizer nada e sentou-se ao meu lado.
— Achas que estamos a falhar como pais? — perguntou ela, num sussurro.
Fiquei sem resposta. O medo de falhar era uma sombra constante. Lembrei-me do meu próprio pai — severo, distante — e prometi a mim mesmo que seria diferente. Mas agora sentia-me igual: ausente, incapaz de dar à minha família aquilo que precisava.
— Não sei… — respondi finalmente. — Só sei que estou cansado. E tu também.
Ela encostou-se ao meu ombro e chorou baixinho. Ficámos assim durante minutos intermináveis.
No dia seguinte, tentei sair mais cedo do trabalho para ajudar em casa. Mas o trânsito na Ponte 25 de Abril era infernal e cheguei ainda mais tarde do que o costume. A Sofia estava à porta com o Tomás ao colo e os outros dois aos gritos no corredor.
— Não aguento mais esta vida! — gritou ela assim que me viu.
— Achas que eu aguento? — respondi sem pensar.
Foi como se uma barreira tivesse caído entre nós. Passámos dias sem quase falar um com o outro. Os miúdos sentiam tudo — a tensão, os silêncios, os olhares trocados à mesa do jantar.
Uma noite, ouvi a Matilde perguntar à Sofia:
— Mãe, vais-te embora?
O coração apertou-se-me no peito. Lembrei-me das noites em criança em que ouvia os meus pais discutir atrás das portas fechadas. Prometi que nunca faria isso aos meus filhos…
No fim-de-semana seguinte, decidi levar os miúdos ao parque sozinho para dar um tempo à Sofia. Ela ficou em casa a dormir pela primeira vez em meses. No parque, sentei-me num banco enquanto eles brincavam e vi outros pais com ar igualmente cansado. Um deles sentou-se ao meu lado.
— Também tens três? — perguntou ele com um sorriso triste.
Assenti.
— Às vezes penso que não vou aguentar — confessei.
Ele riu-se.
— Bem-vindo ao clube dos pais desesperados…
Conversámos durante horas sobre fraldas, noites sem dormir e sonhos adiados. Senti-me menos sozinho pela primeira vez em muito tempo.
Quando voltei para casa, encontrei a Sofia sentada à mesa da cozinha com uma chávena de chá nas mãos.
— Preciso de ajuda — disse ela antes que eu dissesse alguma coisa. — Não consigo fazer isto sozinha…
Sentei-me à frente dela e peguei-lhe nas mãos.
— Também preciso de ajuda — admiti.
Foi nesse momento que decidimos procurar apoio: falámos com os nossos pais (que sempre acharam que estávamos a exagerar), marcámos consulta com uma psicóloga familiar do centro de saúde e pedimos à vizinha para ficar com os miúdos uma tarde por semana para podermos sair só os dois.
Não foi fácil. O dinheiro era pouco e as culpas muitas. Os meus sogros diziam que “no nosso tempo não havia cá psicólogos”; a minha mãe achava que era tudo uma questão de organização e força de vontade. Mas nós sabíamos que precisávamos de mais do que conselhos vazios.
Com o tempo (e muita terapia), começámos a falar mais um com o outro e menos aos gritos. Aprendi a mudar fraldas sem reclamar; a Sofia voltou a rir-se das piadas parvas do João; a Matilde deixou de perguntar se íamos separar-nos todas as noites antes de dormir.
Mas ainda hoje há dias em que sinto vontade de fugir para bem longe — apanhar um comboio para o Norte e desaparecer por uns tempos. Depois olho para os meus filhos a dormir e penso: “Eles precisam de mim… mas eu também preciso de mim.” Será possível ser bom pai sem perder quem somos? Será possível amar tanto alguém e ainda assim sentir vontade de desistir?
E vocês? Já sentiram isto? Como é que se sobrevive quando ser pai ou mãe parece ser demais?