A Casa Que Nunca Foi Minha: Entre o Amor de Mãe e o Medo de Perder a Filha
— Não, Mariana! Não podes aceitar isso! — A minha voz saiu mais alta do que eu queria, mas não consegui controlar. O café da manhã ficou esquecido na mesa, o cheiro do pão quente misturava-se ao amargo do medo que me subia à garganta.
Ela olhou para mim, olhos grandes, já marejados. — Mãe, por favor… O Pedro só quer proteger o investimento. Diz que é mais seguro assim, por causa das dívidas do pai dele.
— E tu acreditas nisso? — Senti as mãos tremerem. — Mariana, essa casa é para vocês, para os teus filhos! Como é que vai ficar no nome da mãe dele?
O silêncio caiu pesado. O relógio da parede marcava nove e meia, mas parecia que o tempo tinha parado. O meu neto, o pequeno Tomás, brincava no tapete da sala, alheio à tempestade que se formava entre mim e a filha.
Lembro-me de quando ela nasceu. O medo de não ser suficiente, de não conseguir protegê-la deste mundo duro. Agora, tantos anos depois, sentia-me novamente impotente. Mariana estava grávida do segundo filho, cansada, vulnerável. E o Pedro… sempre tão educado comigo, mas agora mostrava um lado que eu nunca tinha visto.
Naquela noite, não consegui dormir. O meu marido, António, ressonava ao meu lado, alheio à minha angústia. Levantei-me e fui até à cozinha. Sentei-me à mesa e comecei a fazer contas de cabeça: quanto tinham eles poupado? Quanto valeria o apartamento? E se as coisas corressem mal? E se um dia a Mariana ficasse sem nada?
No dia seguinte, fui falar com o António.
— Achas normal o Pedro querer pôr a casa no nome da mãe dele? — perguntei-lhe.
Ele encolheu os ombros. — Não sei… Talvez seja só para evitar problemas com os credores do pai. Mas percebo o teu receio.
— E se eles se separarem? E se a mãe dele decidir vender a casa? A Mariana fica na rua com os miúdos!
António suspirou. — Fala com ela outra vez. Mas não te metas demasiado… Sabes como ela é teimosa.
Mas eu não conseguia ficar calada. No domingo seguinte, convidei-os para almoçar cá em casa. Fiz bacalhau à Brás, como a Mariana gosta. O Pedro chegou com um ramo de flores para mim — gesto habitual, mas naquele dia pareceu-me falso.
A conversa foi tensa desde o início. O Pedro explicou:
— Dona Lurdes, compreendo a sua preocupação. Mas se pusermos a casa no nome da minha mãe, evitamos que seja penhorada por causa das dívidas do meu pai. É só uma formalidade.
— E a Mariana? — perguntei, olhando-o nos olhos. — Fica sem direitos?
Ele hesitou. — Claro que não! Somos família.
— Família? — repeti, sentindo a raiva crescer. — Família é proteger quem amamos. Não é esconder bens nem deixar a minha filha desprotegida!
Mariana chorou durante o almoço. O Tomás ficou assustado e quis ir brincar para o quarto. Senti-me horrível por causar aquela cena, mas não podia calar-me.
Nos dias seguintes, a tensão aumentou. Mariana deixou de me atender o telefone. O António dizia para eu dar tempo ao tempo. Mas eu conheço a minha filha: quando está magoada, afasta-se.
Uma semana depois, recebi uma mensagem dela: “Mãe, preciso falar contigo”.
Fui ter com ela ao jardim perto da escola do Tomás. Estava pálida, olheiras fundas.
— Mãe… Eu amo o Pedro. Mas tenho medo de estar a ser ingénua. Ele diz que é só para proteger a casa das dívidas do pai… Mas e se um dia ele muda?
Abracei-a com força. — Filha, tu tens de pensar em ti e nos teus filhos. Não podes depender da boa vontade de ninguém.
Ela chorou no meu ombro como quando era pequena e caía da bicicleta.
— E se eu disser que não aceito? E se ele me deixar?
— Então ele nunca te mereceu — disse-lhe baixinho.
Os dias seguintes foram um inferno. Mariana confrontou o Pedro. Discutiram durante horas. Ele acusou-me de meter veneno na cabeça dela. Disse-lhe que eu era controladora, que nunca aceitei verdadeiramente o casamento deles.
Mariana veio dormir cá a casa com o Tomás durante dois dias. O Pedro ligava-lhe sem parar; mensagens cheias de promessas e ameaças veladas.
Na terceira noite, ele apareceu à porta.
— Dona Lurdes, posso falar consigo?
Fomos até à varanda. Ele estava nervoso, mãos nos bolsos.
— Eu amo a Mariana — disse ele. — Mas não posso pôr tudo em risco por causa das dívidas do meu pai.
— Então arranjem outra solução! Ponham metade no nome dela e metade no da sua mãe! Ou façam um contrato! Mas não tire os direitos à minha filha!
Ele ficou calado muito tempo.
No dia seguinte, Mariana voltou para casa deles. Disse-me que iam pensar melhor no assunto.
Passaram-se semanas de silêncio tenso. Eu via o Tomás só aos fins-de-semana; Mariana estava distante, cansada.
Até que um dia ela ligou:
— Mãe… decidimos comprar uma casa mais pequena e pôr metade no meu nome e metade no da mãe dele. Não é perfeito… mas pelo menos fico protegida.
Senti um alívio imenso misturado com tristeza: era uma vitória amarga. Sabia que nunca mais seria igual entre mim e o Pedro; sabia também que Mariana tinha perdido um pouco da inocência.
Hoje olho para ela e vejo uma mulher mais forte, mas também mais desconfiada. Pergunto-me se fiz bem em meter-me tanto… ou se devia ter confiado mais nela.
Será que proteger quem amamos justifica perdermos a paz? Ou será que há batalhas que simplesmente não podemos evitar?