Entre Dois Mundos: O Dia em que Tive de Escolher Entre o Meu Pai e a Minha Mãe

— Mariana, diz-me agora: queres ficar comigo ou com o teu pai? — A voz da minha mãe ecoou pela sala, trémula, mas firme. O meu coração batia tão forte que quase não conseguia ouvir mais nada. O meu pai estava encostado à porta, braços cruzados, olhar perdido no chão. Eu tinha apenas quinze anos e, de repente, sentia-me responsável por decidir o rumo da minha própria vida — e da deles.

Lembro-me perfeitamente daquela noite fria de janeiro em Coimbra. A chuva batia nas janelas do nosso apartamento pequeno, e o cheiro a sopa de legumes pairava no ar, misturado com a tensão que se acumulava há meses. Os meus pais já não se falavam sem discutir. Pequenas coisas — uma loiça por lavar, uma conta esquecida — tornavam-se batalhas épicas. Eu tentava ser invisível, mas naquele momento não havia como fugir.

— Mariana, responde! — insistiu a minha mãe, os olhos vermelhos de tanto chorar.

Olhei para o meu pai à procura de um sinal, mas ele apenas suspirou e virou-me as costas. Senti-me traída. Como podia ele abandonar-me assim? Mas depois lembrei-me das noites em que ele me levava ao parque, dos gelados ao domingo, das histórias antes de dormir. E da minha mãe, sempre presente, sempre preocupada com as minhas notas, com o meu futuro.

— Não sei… — murmurei, a voz quase inaudível.

— Tens de escolher — disse ela, agora mais suave. — O tribunal quer saber com quem vais ficar.

Fugi para o meu quarto e fechei a porta com força. Atirei-me para a cama e chorei até não ter mais lágrimas. Senti raiva deles por me colocarem naquela posição. Senti raiva de mim por não conseguir decidir. Peguei no terço que a minha avó me dera e comecei a rezar baixinho:

“Deus, ajuda-me. Não sei o que fazer.”

Na escola, os meus amigos notavam que eu estava diferente. A Inês tentou perguntar-me o que se passava, mas eu só abanava a cabeça. Não queria ser “a filha dos pais divorciados”. O professor de Matemática chamou-me à parte depois da aula:

— Mariana, tens andado distraída. Precisas de ajuda?

Quis gritar que precisava de tudo menos de matemática. Mas limitei-me a sorrir e dizer que estava cansada.

Em casa, as discussões continuavam. Uma noite ouvi o meu pai dizer:

— Ela vai escolher-te a ti. Sempre foste a preferida dela.

A minha mãe respondeu:

— Não digas disparates! Só quero o melhor para ela.

Senti-me um prémio numa competição cruel.

O tempo foi passando e o dia da decisão aproximava-se. O advogado da família marcou uma reunião. Sentei-me entre os meus pais numa sala fria, com paredes brancas e cadeiras desconfortáveis. O advogado olhou para mim por cima dos óculos:

— Mariana, sabes porque estás aqui?

Assenti.

— Queres dizer-nos com quem gostarias de viver?

Olhei para os meus pais. A minha mãe apertava um lenço nas mãos; o meu pai mordia o lábio inferior. Pensei em fugir dali para sempre.

— Posso… posso ficar com os dois? — arrisquei.

O advogado abanou a cabeça:

— Infelizmente não é possível neste momento.

Senti um nó na garganta. Fechei os olhos e lembrei-me das palavras da minha avó: “Quando não souberes o que fazer, escuta o teu coração.” Mas o meu coração estava partido em dois.

Naquela noite sonhei com a minha infância: eu, pequena, entre os meus pais no sofá, a rir das piadas do Herman José na televisão. Acordei com lágrimas nos olhos.

No domingo seguinte fui à missa com a minha avó. Sentei-me ao lado dela e rezei como nunca tinha rezado antes. Pedi um sinal, uma resposta, qualquer coisa que me ajudasse a decidir.

Depois da missa, sentei-me com ela no jardim da igreja.

— Avó, como é que tu sabias sempre o que fazer?

Ela sorriu e passou-me a mão pelo cabelo.

— Não sabia, filha. Só fazia o melhor que podia com aquilo que tinha no coração.

Nesse momento percebi que não havia decisão certa ou errada — só havia aquilo que eu sentia ser menos doloroso.

Na segunda-feira disse aos meus pais que queria viver com a minha mãe. O meu pai ficou em silêncio durante muito tempo. Depois levantou-se e saiu sem dizer palavra.

Durante semanas não lhe consegui ligar. Sentia-me culpada cada vez que via as fotografias dele na estante ou ouvia uma música dos Xutos & Pontapés — era ele quem me ensinara as letras todas.

A minha mãe tentava animar-me:

— Fizeste o que achaste melhor, Mariana. O teu pai vai perceber um dia.

Mas eu sabia que nada voltaria a ser igual.

Um dia recebi uma mensagem do meu pai:

“Queres ir jantar ao sítio do costume?”

O coração saltou-me do peito. No restaurante, ele parecia mais velho, mais cansado.

— Desculpa ter-te posto nesta situação — disse ele baixinho. — Eu amo-te muito.

Chorei ali mesmo à frente dele. Ele abraçou-me como quando eu era pequena e prometeu nunca deixar de estar presente na minha vida.

Aos poucos fui aprendendo a viver entre dois mundos: os fins-de-semana com o pai em Aveiro; os dias de semana com a mãe em Coimbra; as festas divididas; os natais alternados; as saudades constantes de um lado quando estava com o outro.

A fé ajudou-me a perdoar os meus pais — e a perdoar-me a mim própria por ter tido de escolher.

Hoje sou adulta e olho para trás com alguma tristeza mas também com gratidão: aprendi cedo que a vida é feita de escolhas difíceis e que às vezes não há respostas perfeitas — só coragem para seguir em frente.

Pergunto-me muitas vezes: será que algum dia deixamos mesmo de ser filhos entre dois mundos? E vocês? Como lidariam com uma escolha assim?