Quando o Silêncio Faz Aniversário: A História de Inês

— Não vais mesmo ligar à tua irmã? — perguntou a minha mãe, com aquela voz cansada de quem já não espera resposta.

Olhei para o telemóvel pousado na mesa da cozinha, ao lado do bolo que eu própria comprei no supermercado. O relógio marcava 19h12. Era o meu aniversário. O silêncio da casa parecia mais pesado do que nunca, como se cada parede guardasse ecos de festas antigas, gargalhadas e vozes que já não moravam ali.

— Para quê, mãe? Ela nem se lembrou do ano passado — respondi, tentando esconder a mágoa com um sorriso forçado. Mas a verdade é que doía. Doía muito mais do que eu queria admitir.

A minha mãe suspirou e voltou a mexer no tacho. O cheiro do arroz de pato enchia a cozinha, mas não havia apetite. Só saudade. Saudade dos tempos em que a casa enchia de gente, primos, vizinhos, amigos da escola e até colegas do trabalho do meu pai. Agora, éramos só nós duas. O meu pai saiu de casa há três anos, depois de uma discussão que começou por causa de uma conta de eletricidade e acabou com portas a bater e promessas quebradas.

A minha irmã, a Mariana, foi viver com ele para Lisboa. Disse que precisava de espaço, que aqui na aldeia não havia futuro. Eu fiquei com a minha mãe, porque alguém tinha de cuidar dela — ou talvez porque não tive coragem de ir embora.

O telemóvel vibrou. Uma mensagem. O coração acelerou, mas era só a operadora a oferecer-me 500MB grátis pelo meu aniversário. Ri-me sozinha, um riso amargo.

Lembrei-me dos meus aniversários em criança. A mesa cheia de doces feitos pela avó Rosa: arroz-doce com canela em pó a desenhar o número dos meus anos, fatias douradas e aquele bolo de laranja húmido que só ela sabia fazer. Os amigos corriam pelo quintal, jogávamos à apanhada até anoitecer. A Mariana era sempre a primeira a dar-me os parabéns, com um abraço apertado e um cartão feito à mão.

Agora, nem uma chamada.

— Inês, anda pôr a mesa — pediu a minha mãe.

Levantei-me devagar e comecei a alinhar os pratos e talheres. Ouvia o tic-tac do relógio da parede e sentia cada segundo como uma pequena facada. O telefone continuava mudo.

— Achas que ela vai ligar? — perguntei baixinho.

A minha mãe encolheu os ombros.

— A tua irmã sempre foi cabeça no ar… Mas gosta de ti, sabes disso.

Não respondi. Não sabia se sabia.

Durante o jantar, falámos pouco. A televisão fazia companhia com as notícias do costume: crise na saúde, professores em greve, incêndios no interior. Tudo igual ao ano passado. Tudo igual ao ano anterior.

Depois do jantar, fui até ao quarto. Sentei-me na cama e olhei para as fotografias antigas coladas na parede: eu e a Mariana na praia da Nazaré, os quatro num piquenique no Gerês, o Natal em casa dos avós antes de tudo se desmoronar.

Peguei no telemóvel outra vez. Abri o WhatsApp. Nenhuma mensagem nova. Abri o Instagram: stories de colegas da faculdade em festas, viagens, sorrisos falsos ou verdadeiros — já nem sei distinguir.

Pensei em ligar à Mariana. Escrevi uma mensagem: “Hoje fazes ideia de que dia é?” Apaguei antes de enviar. Não queria parecer carente. Não queria dar-lhe esse poder.

Deitei-me na cama e fechei os olhos. Lembrei-me da última vez que estivemos juntas: Natal passado. Ela chegou atrasada, trouxe um presente embrulhado à pressa e passou o jantar colada ao telemóvel. Quando lhe perguntei se ia ficar para a sobremesa, respondeu:

— Tenho um jantar com amigos em Lisboa… Não posso faltar.

A minha mãe chorou depois dela sair. Eu também chorei, mas em silêncio.

Oiço passos no corredor. A porta abre-se devagar.

— Inês… — a voz da minha mãe é suave — Queres vir ver um filme comigo?

Assenti com a cabeça e levantei-me. Sentámo-nos juntas no sofá da sala, enroladas numa manta velha. Vimos um filme qualquer na RTP2 — nem me lembro do nome. Durante duas horas esqueci-me do mundo lá fora.

Quando o filme acabou, voltei ao quarto. O telemóvel tinha uma notificação: mensagem da Mariana.

“Desculpa só agora… Parabéns mana! Espero que tenhas tido um bom dia. Beijinhos.”

Li e reli aquelas palavras frias. Nenhum emoji, nenhum telefonema. Só uma mensagem automática, como quem cumpre um dever.

Respondi apenas: “Obrigada.”

Apaguei as luzes e fiquei ali no escuro, a ouvir o vento lá fora e o bater do meu coração acelerado pela tristeza.

No dia seguinte acordei cedo para ir trabalhar no café da vila. A dona Lurdes já estava lá quando cheguei.

— Parabéns atrasados, Inês! — disse ela com um sorriso sincero — Ontem não consegui ligar-te… Estava cheia de trabalho!

Sorri-lhe agradecida. Pelo menos alguém se lembrou.

O dia passou devagar entre cafés tirados à pressa e conversas banais com os clientes habituais: o senhor António que reclama sempre do preço dos pastéis de nata; a dona Emília que pergunta por novidades da capital; o Joãozinho que me pisca o olho sempre que pede um galão.

No intervalo sentei-me na esplanada e olhei para o céu cinzento da Beira Alta. Pensei em tudo o que perdi: os amigos que foram estudar para fora e nunca mais voltaram; os sonhos de ser jornalista em Lisboa; as noites em que dançava até de madrugada nas festas da aldeia; as promessas feitas à lareira nos invernos frios.

Agora sou só eu e a minha mãe nesta casa grande demais para duas pessoas caladas demais.

À noite, depois do jantar, sentei-me outra vez à janela do meu quarto. Vi as luzes das casas vizinhas acenderem-se uma a uma. Perguntei-me quantas pessoas estariam sozinhas como eu naquele momento.

Peguei num caderno antigo e comecei a escrever:

“Uma vez fui a alma da festa. Hoje sou só mais uma sombra entre as paredes desta casa vazia. Será que algum dia vou voltar a sentir-me parte de alguma coisa? Será que alguém sente esta solidão como eu?”

Fechei o caderno e abracei-o contra o peito.

Talvez amanhã seja diferente… Ou talvez não seja nunca mais.

E vocês? Já sentiram este vazio nos dias em que mais precisavam de companhia? O que fazem quando até o silêncio parece fazer anos convosco?