“Tu Não Agradeces Nada! Temos de Poupar!” – O Sermão da Minha Mãe e o Preço da Felicidade

“Tu não agradeces nada! Temos de poupar, Lucas!” O grito da minha mãe ecoou pela cozinha, misturando-se com o cheiro a sopa de legumes requentada. Eu estava sentado à mesa, com o telemóvel na mão, enquanto a minha irmã Inês revirava os olhos e mordiscava uma fatia de pão duro.

“Ó mãe, mas era só um gelado… Nem era caro!” protestei, tentando não levantar muito a voz. Sabia que discutir só ia piorar as coisas, mas às vezes não aguentava.

A minha mãe, Teresa, largou as meias que estava a remendar e olhou-me com aquele olhar que sempre me fazia sentir pequeno. “Um gelado hoje, amanhã um lanche na pastelaria, depois uma camisola nova… Achas que o dinheiro cai do céu?”

Inês bufou. “Mãe, tens noção que somos os únicos da turma que nunca vão ao cinema? Nem sequer temos Netflix!”

O silêncio caiu pesado. Ouvia-se apenas o tique-taque do relógio da parede e o som dos carros lá fora. A minha mãe suspirou fundo e voltou ao seu sermão habitual: “Quando eu tinha a vossa idade, partilhava sapatos com a vossa tia. Nunca pedi nada. E sabem porquê? Porque sabia que não havia dinheiro! Agora vocês querem tudo, mas não percebem o esforço que é pôr comida nesta mesa.”

Eu olhei para as mãos dela, calejadas, os dedos manchados de linha azul. Lembrei-me das vezes em que ela chegava tarde do supermercado, carregada de sacos cheios de promoções e legumes quase a passar do prazo. O meu pai morreu cedo – eu tinha oito anos, a Inês seis – e desde então foi ela sozinha contra o mundo. Mas às vezes parecia que ela lutava contra nós também.

“Ó mãe, ninguém está a dizer que não trabalhas. Só queríamos… sei lá… viver um bocadinho.” A voz da Inês tremia. Ela era mais sensível do que eu, mas também mais teimosa.

A minha mãe levantou-se de repente e foi até à janela. Ficou ali calada, a olhar para o céu cinzento de Lisboa. Eu sabia que ela chorava em silêncio – já tinha apanhado várias vezes os olhos dela vermelhos quando pensava que ninguém via.

Naquela noite, jantámos quase sem falar. O rádio tocava baixinho uma música triste da Mariza e eu sentia um nó no estômago. Depois do jantar, fui para o quarto e fechei a porta devagarinho. Sentei-me na cama e fiquei a olhar para o teto.

“Será que ela tem razão?” pensei. “Será que somos mesmo ingratos?”

No dia seguinte, na escola, toda a gente falava do concerto dos D.A.M.A no Coliseu. O João mostrou-me vídeos no telemóvel – luzes, gritos, felicidade pura. Senti inveja. Não era só pelo concerto; era por aquela leveza de quem não pensa duas vezes antes de pedir dinheiro aos pais.

Quando cheguei a casa, encontrei a Inês sentada no chão do corredor, a chorar baixinho.

“O que foi?” perguntei, ajoelhando-me ao lado dela.

“Ela encontrou o meu diário… Leu tudo.”

Fiquei sem saber o que dizer. Sabia que a Inês escrevia sobre tudo – sobre o pai, sobre as saudades dele, sobre como sentia falta de ter uma família ‘normal’. Sabia também que escrevia sobre a mãe – sobre os medos dela, sobre como às vezes parecia que ela nos amava menos do que amava o dinheiro.

A porta da cozinha abriu-se devagar. A minha mãe apareceu à nossa frente, com os olhos inchados.

“Inês… Desculpa.”

A minha irmã levantou-se num salto. “Desculpa? Tu leste tudo! Não tens direito!”

A minha mãe tentou tocar-lhe no braço, mas ela afastou-se. “Eu só queria perceber… Eu só queria saber se vocês estavam bem.”

“Se querias saber, podias perguntar!” gritou a Inês.

Eu fiquei ali parado, sem saber para onde olhar. O corredor parecia mais estreito do que nunca.

A minha mãe sentou-se no chão e começou a chorar também. “Eu tenho medo… Tenho tanto medo de vos faltar alguma coisa… De não conseguir ser suficiente.”

Sentei-me ao lado dela e abracei-a. A Inês hesitou, mas acabou por se juntar ao abraço.

Ficámos assim muito tempo – três pessoas perdidas numa casa pequena demais para tanto silêncio.

Nos dias seguintes, as coisas mudaram um pouco. A minha mãe começou a tentar ouvir-nos mais – às vezes sentava-se connosco na sala e perguntava como tinha corrido o dia. Mas continuava obcecada com as contas: fazia listas intermináveis de despesas, recortava cupões dos jornais velhos e guardava moedas em frascos escondidos pela casa.

Uma noite, depois do jantar, sentei-me com ela na varanda enquanto ela fumava um cigarro (o único luxo que nunca largou).

“Mãe… Tu és feliz?” perguntei baixinho.

Ela olhou para mim com surpresa. “Feliz? Não sei… Acho que nunca pensei nisso.”

“Mas gostavas de ser?”

Ela ficou calada muito tempo. Depois sorriu tristemente: “Talvez já não saiba como se faz.”

Nesse momento percebi que o medo dela era maior do que qualquer conta por pagar – era o medo de perder tudo outra vez.

No fim do verão, arranjei um trabalho num café perto de casa. Comecei a juntar algum dinheiro e levei a Inês ao cinema pela primeira vez em anos. Quando voltámos para casa, encontrámos a minha mãe à nossa espera na sala.

“Divertiram-se?” perguntou ela, com um sorriso tímido.

“Sim,” respondi. “E trouxemos-te um gelado.”

Ela riu-se – uma gargalhada verdadeira, daquelas raras – e abraçou-nos aos dois.

Hoje olho para trás e penso em tudo o que perdemos por causa do medo e da necessidade de poupar cada cêntimo. Mas também penso no amor escondido nos gestos pequenos: nas meias remendadas, nas sopas feitas com restos, nos abraços apertados depois das discussões.

Será que algum dia conseguimos encontrar equilíbrio entre poupar para o futuro e viver o presente? Ou será esse o dilema eterno das famílias como a nossa?