Entre o Amor e o Dever: Quando o Coração Quer e a Vida Não Permite

— Não podes continuar assim, Inês! — gritou a minha mãe da cozinha, enquanto eu, sentada à mesa da sala, olhava para o telemóvel à espera de uma mensagem do Miguel. — Já viste no que te tornaste? Sempre à espera de um homem que nem casa tem para te oferecer!

As palavras dela ecoavam como marteladas na minha cabeça. Eu sabia que ela tinha razão. Miguel era tudo aquilo que eu sempre temi: instável, sonhador, com dois filhos pequenos que via aos fins de semana e um emprego diferente a cada mês. Mas quando ele sorria para mim, quando me abraçava depois de um dia difícil, parecia que o mundo fazia sentido.

— Mãe, eu amo-o — respondi num fio de voz, quase sem acreditar que ainda tinha forças para repetir aquela frase. — Ele precisa de mim. E eu dele.

Ela bufou, limpando as mãos ao avental. — O amor não paga contas, filha. O amor não cria estabilidade. E tu mereces mais do que migalhas de atenção.

Lembro-me do primeiro dia em que conheci o Miguel. Foi numa festa de aniversário do meu primo Rui, num café em Almada. Ele chegou atrasado, com o cabelo despenteado e uma camisa amarrotada, mas com um olhar tão intenso que me fez esquecer tudo à minha volta. Falámos sobre livros, sobre música portuguesa, sobre os sonhos que tínhamos quando éramos crianças. No final da noite, trocámos números e ele prometeu ligar-me no dia seguinte. Ligou mesmo.

No início era tudo novo e excitante. Ele levava-me a passear pela Costa da Caparica ao pôr do sol, fazia piqueniques improvisados no parque da cidade e escrevia-me mensagens longas cheias de poesia barata. Mas depois vieram as ausências. As desculpas. “Tenho de ficar com os miúdos este fim de semana.” “O trabalho correu mal, não posso sair hoje.” “Preciso de tempo para mim.”

Os meus amigos começaram a afastar-se. “Estás a perder-te por causa dele”, dizia a Joana, a minha melhor amiga desde o liceu. “Ele nunca vai mudar. Não vês?” Eu via. Mas não queria acreditar.

Miguel tinha dois filhos pequenos, o Tiago e a Matilde, frutos de um casamento falhado com a Ana Rita, uma mulher que nunca conheci mas que parecia pairar sobre nós como uma sombra constante. Sempre que ele falava dela, era com uma mistura de raiva e tristeza. “Ela tirou-me tudo”, dizia ele. “Mas tu dás-me esperança.”

Durante quatro anos vivi entre a esperança e a desilusão. Havia dias em que ele aparecia à porta de casa com flores roubadas do jardim público e um sorriso cansado, e eu esquecia todas as promessas quebradas. Havia outros em que passava noites inteiras sozinha, a olhar para o teto do quarto, a perguntar-me se algum dia seria suficiente para ele.

A minha família nunca aceitou o Miguel. O meu pai recusava-se a falar dele à mesa; a minha irmã mais nova fazia piadas cruéis sobre “os filhos dos outros” e os meus tios evitavam convidar-me para jantares de família para não terem de lidar com o incómodo.

Uma noite chuvosa de novembro, tudo mudou. O Miguel apareceu em minha casa encharcado até aos ossos, com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Inês… preciso de ti — disse ele, caindo de joelhos no tapete da sala. — Perdi o emprego outra vez. A Ana Rita quer levar os miúdos para o Porto e eu não tenho como lutar por eles… Não tenho nada.

Sentei-me ao lado dele e abracei-o com força. Senti o cheiro do seu cabelo molhado e o tremor das suas mãos nas minhas costas.

— Eu estou aqui — sussurrei. — Vamos dar a volta por cima juntos.

Mas no fundo eu sabia que estava a afundar-me com ele.

As semanas seguintes foram um pesadelo. Miguel tornou-se cada vez mais distante, fechado no seu próprio sofrimento. Eu tentava animá-lo, procurava empregos por ele na internet, oferecia-lhe dinheiro emprestado que sabia que nunca iria ver de volta. A minha mãe ameaçou expulsar-me de casa se continuasse a ajudá-lo.

— Ele está-te a arrastar para o fundo! — gritava ela. — Tu não vês? Vais acabar sozinha e sem nada!

Comecei a faltar ao trabalho para estar com ele nas entrevistas, mentia aos meus colegas sobre o motivo das minhas ausências e perdi amizades importantes porque já ninguém aguentava ouvir falar do “meu drama”.

Um dia, depois de mais uma discussão feia com a minha mãe, fugi para casa do Miguel. Ele estava sentado no sofá velho da sala minúscula onde vivia desde que se separou da Ana Rita, rodeado de caixas de brinquedos dos filhos e contas por pagar.

— Inês… — começou ele, mas eu interrompi-o.

— Não posso mais — disse-lhe, sentindo as lágrimas a correrem-me pelo rosto. — Eu amo-te, mas estou a perder-me nesta história. Não posso continuar a ser a tua tábua de salvação enquanto me afundo.

Ele olhou para mim como se eu fosse uma estranha.

— Então vais deixar-me agora? Quando mais preciso de ti?

— Precisas de ti próprio primeiro — respondi baixinho. — E eu também.

Saí dali sem olhar para trás. Chovia outra vez e senti o frio entranhar-se nos ossos enquanto caminhava pelas ruas vazias de Almada.

Os meses seguintes foram um vazio doloroso. Tentei reconstruir-me aos poucos: voltei ao trabalho, reaproximei-me dos amigos que ainda restavam e comecei terapia para lidar com a culpa e o luto daquela relação falhada.

Miguel tentou contactar-me várias vezes: mensagens longas cheias de promessas antigas, pedidos de desculpa misturados com acusações veladas. Nunca respondi.

Hoje olho para trás e pergunto-me se fiz bem ou mal. Se poderia ter feito mais por ele ou por mim própria. Se algum dia vou conseguir amar alguém sem medo de me perder outra vez.

E vocês? Já sentiram que amar alguém pode ser também uma forma de nos destruirmos? Até onde devemos ir por amor?