Entre Silêncio e Tempestade: O Meu Nome é Sofia
— Não me peças para escolher, mãe! — gritei, sentindo a garganta arder e as lágrimas ameaçarem cair. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. O relógio da sala marcava onze da noite, e o cheiro do café frio misturava-se com o perfume adocicado das flores murchas na mesa. A minha mãe, Maria do Carmo, olhou-me com olhos vermelhos de cansaço e mágoa.
— Sofia, tu sabes que o teu pai não vai aguentar mais uma desilusão. — A voz dela tremia, mas havia nela uma dureza que eu nunca tinha ouvido antes. — Ele já perdeu tanto…
Quis responder, dizer-lhe que eu também estava a perder. Que cada vez que me pedia para abdicar dos meus sonhos, era como se arrancasse um pedaço de mim. Mas as palavras ficaram presas na garganta. O meu pai, António, estava sentado no sofá, o olhar perdido na televisão desligada. Desde que fora despedido dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, há três anos, nunca mais foi o mesmo homem. O orgulho dele tinha-se transformado em silêncio e raiva contida.
A minha irmã mais nova, Inês, espreitava da porta do quarto. Tinha só dez anos, mas já percebia demasiado. Eu era a filha mais velha, a esperança da família. A primeira a entrar na universidade — ou assim esperavam eles. Mas eu queria outra coisa. Queria ser bailarina. Queria dançar até os pés sangrarem, até o corpo esquecer todas as dores.
Naquela noite, o conflito explodiu. O meu pai levantou-se de repente.
— Aqui em casa ninguém vive de sonhos! — berrou ele, a voz ecoando pelas paredes finas do nosso apartamento em Matosinhos. — Vais estudar Direito como combinámos! Não vou sustentar malabarismos!
A minha mãe chorava baixinho. Inês desapareceu para o quarto. Eu fiquei ali, sozinha no meio da sala, sentindo-me pequena e inútil.
Durante semanas, a tensão foi crescendo como uma tempestade prestes a rebentar. Os meus pais mal se falavam. Eu evitava chegar cedo a casa para não enfrentar os olhares acusadores do meu pai ou as súplicas silenciosas da minha mãe. Só Inês tentava manter alguma normalidade, trazendo-me desenhos e bilhetes escondidos debaixo da porta: “Não desistas dos teus sonhos, mana”.
Mas como não desistir quando tudo à minha volta me puxava para baixo? As contas acumulavam-se na mesa da cozinha. O frigorífico estava cada vez mais vazio. O meu pai recusava-se a aceitar trabalhos temporários — dizia que era indigno depois de tantos anos como engenheiro naval. A minha mãe fazia limpezas em casas alheias para pagar as despesas.
Uma noite, ouvi-os discutir na cozinha.
— Ela vai acabar como nós — dizia o meu pai, amargo. — A sonhar alto e a cair baixo.
— Pelo menos ela ainda sonha — respondeu a minha mãe, num sussurro quase inaudível.
No dia seguinte, tomei uma decisão. Fui à escola de dança onde treinava às escondidas e pedi uma bolsa. Expliquei tudo: a situação em casa, o medo de falhar, a paixão que me consumia desde criança. A diretora ouviu-me em silêncio e depois sorriu.
— Tens talento, Sofia. Mas precisas de coragem para aguentar o caminho.
Voltei para casa com o coração aos saltos e uma carta na mão: tinha conseguido uma bolsa parcial para estudar dança no Porto. Mas quando contei aos meus pais, o mundo desabou.
O meu pai rasgou a carta diante dos meus olhos.
— Não vais! — gritou ele. — Enquanto viveres nesta casa, fazes o que eu mando!
A minha mãe tentou intervir, mas ele empurrou-a para trás com um gesto brusco. Eu fugi para o quarto e chorei até adormecer.
Nos dias seguintes, mal nos falávamos. O ambiente era insuportável. Comecei a sair cada vez mais cedo e a voltar cada vez mais tarde. Um dia cheguei a casa e encontrei Inês sentada nas escadas do prédio, abraçada aos joelhos.
— O pai bateu na mãe… — sussurrou ela, os olhos grandes cheios de medo.
O chão fugiu-me dos pés. Entrei em casa a correr e vi a minha mãe com um lábio inchado e um olhar vazio.
— Vai-te embora daqui, Sofia — disse ela baixinho. — Não quero que acabes como eu.
Naquela noite fiz as malas às escondidas. Deixei um bilhete para Inês: “Nunca deixes de sonhar”. Saí de casa sem olhar para trás.
Os primeiros meses foram um inferno. Dormia em sofás de amigas ou em quartos alugados por horas no centro do Porto. Trabalhava num café durante o dia e treinava à noite até as pernas me falharem. Houve dias em que pensei desistir — quando via casais felizes na rua ou mães a buscar os filhos à escola sentia uma dor tão funda que mal conseguia respirar.
Mas também houve momentos de luz: o primeiro solo no Teatro Rivoli; o aplauso inesperado de um desconhecido; as mensagens da Inês escondidas nos livros que me emprestava às escondidas da minha mãe: “Estou orgulhosa de ti”.
O tempo passou devagar. Fui crescendo à força das quedas e das ausências. O meu pai nunca mais me falou. A minha mãe ligava-me às escondidas para saber se eu estava bem — mas nunca tinha coragem de me pedir para voltar.
Um dia recebi uma chamada do hospital: o meu pai tinha tido um AVC. Corri para lá sem pensar duas vezes. Quando cheguei ao quarto dele, vi um homem envelhecido antes do tempo, com as mãos trémulas e os olhos cheios de lágrimas não choradas.
— Desculpa… — murmurou ele, com dificuldade.
Sentei-me ao lado dele e peguei-lhe na mão. Pela primeira vez em anos senti compaixão em vez de raiva.
— Eu só queria que fosses feliz… à minha maneira — disse ele.
Chorámos juntos nesse dia. Não apagou tudo o que aconteceu, mas abriu uma porta para o perdão.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento no Bonfim. Dou aulas de dança a crianças e continuo a treinar todos os dias. A minha mãe voltou a sorrir devagarinho; Inês está quase a entrar na universidade — quer ser psicóloga para ajudar famílias como a nossa.
Às vezes pergunto-me se valeu a pena tanta dor para seguir um sonho. Se podia ter feito diferente ou se estava destinada a este caminho desde sempre.
E vocês? Acham que é possível recomeçar depois de perder tudo? Ou será que há feridas que nunca saram?