Quando o Avô Veio Viver Connoco: Amor, Conflitos e Segredos Num Pequeno Apartamento
— Não podes simplesmente decidir isso por nós, Mãe! — gritou o João, o meu marido, enquanto eu tentava acalmar a nossa filha, a Leonor, que chorava no quarto ao lado. O telefone ainda estava quente na minha mão. O sogro acabara de ligar: “Filha, não aguento mais sozinho. Preciso de ficar convosco uns tempos.”
O silêncio que se seguiu ao telefonema foi pesado. O João olhou para mim com olhos cansados, como se procurasse uma resposta que eu não tinha. O nosso apartamento era pequeno demais para três pessoas, quanto mais quatro. Mas como dizer não ao pai dele? Como explicar à Leonor que o avô ia dormir na sala e que ela teria de partilhar o quarto connosco?
Naquela noite, quase não dormi. Ouvia o João a ressonar baixinho e pensava no avô António: viúvo há dois anos, a viver sozinho em Setúbal, com a saúde a piorar e a tristeza a crescer. Lembrei-me das vezes em que ele me trouxe pastéis de nata ainda quentes do café da esquina, quando eu estava grávida da Leonor. Como podia agora fechar-lhe a porta?
No dia seguinte, o João foi buscá-lo. Chegou com duas malas velhas e um saco de plástico do Pingo Doce cheio de medicamentos. O avô António entrou devagarinho, com o olhar perdido e um sorriso tímido. A Leonor correu para ele, abraçou-o pelas pernas e perguntou:
— Avô, vais ficar connosco para sempre?
Ele sorriu-lhe e fez-lhe uma festa no cabelo.
— Só até a avó me vir buscar dos sonhos, minha querida.
Os primeiros dias foram estranhos. O avô acordava cedo e fazia café forte demais. Espalhava migalhas pela bancada e esquecia-se de fechar o frigorífico. A Leonor achava graça; eu nem tanto. O João tentava manter-se neutro, mas via-se que estava tenso. À noite, discutíamos baixinho na cozinha:
— Não aguento mais esta confusão — sussurrei um dia. — Ele mexe em tudo! Até nos meus papéis do trabalho!
O João suspirou.
— É só por uns tempos…
Mas os “uns tempos” arrastaram-se. O avô começou a esquecer-se das coisas: deixava o gás ligado, perdia as chaves de casa, confundia os nomes dos netos. Uma vez, quase saiu à rua em chinelos e pijama. A Leonor chorou de medo:
— E se o avô se perde?
Tentei tranquilizá-la, mas sentia-me tão perdida quanto ela.
A tensão aumentou quando descobri uma carta antiga escondida no fundo da mala do avô. Era da minha sogra, escrita pouco antes de morrer. Falava de um segredo: “António, nunca contes ao João sobre o que aconteceu naquela noite.”
O coração bateu-me mais depressa. O que teria acontecido? Guardei a carta sem dizer nada ao João. Mas não consegui dormir nessa noite.
Os dias seguintes foram um jogo de máscaras. O avô parecia mais distante; o João mais irritadiço; eu mais ansiosa. Até que uma noite, durante o jantar, o avô olhou para o filho e disse:
— João… há coisas que nunca te contei.
O João largou o garfo.
— Agora não, pai.
Mas o avô insistiu:
— A tua mãe… ela…
A voz falhou-lhe e os olhos encheram-se de lágrimas.
— O que é que se passa? — perguntei eu, tentando soar calma.
O João levantou-se da mesa e saiu para a varanda. O avô ficou a olhar para mim como uma criança perdida.
Nessa noite, depois de adormecerem todos, sentei-me na sala com a carta nas mãos. Li-a outra vez. Falava de uma discussão antiga entre mãe e filho, de palavras duras trocadas numa noite de tempestade. A mãe do João sentira-se traída por uma decisão dele — uma decisão sobre o futuro da família que nunca perdoara completamente.
No dia seguinte, tomei coragem e mostrei a carta ao João. Ele leu-a em silêncio, os olhos fixos no papel amarelecido.
— Porque é que nunca me disseram nada? — murmurou.
Abraçou-me com força e chorou como nunca o tinha visto chorar.
A partir desse dia, algo mudou entre eles. O João começou a passar mais tempo com o pai: iam juntos ao mercado, viam futebol na televisão, riam-se das piadas antigas do avô António. A Leonor desenhava corações para os dois e colava-os na porta do frigorífico.
Mas nem tudo era fácil. As noites eram longas; os dias cheios de pequenas irritações: toalhas molhadas no chão da casa de banho, discussões sobre quem ficava com o comando da televisão, silêncios pesados à mesa.
Uma tarde, quando cheguei do trabalho mais cedo, encontrei o avô António sentado à janela com a Leonor ao colo.
— Sabes, minha querida — dizia ele baixinho — às vezes as famílias zangam-se porque têm medo de perder quem amam.
A Leonor olhou para ele com aqueles olhos grandes e sérios:
— Eu também tenho medo que vás embora.
O avô sorriu-lhe tristemente:
— Um dia vou ter de ir… mas enquanto cá estiver, prometo que te vou contar todas as histórias do mundo.
Naquela noite, sentei-me ao lado do João na cama.
— Achas que estamos a fazer o suficiente? — perguntei-lhe.
Ele olhou para mim com ternura cansada.
— Estamos a fazer o melhor que conseguimos… Somos uma família.
Os meses passaram devagar. O avô António foi ficando mais frágil; as memórias confundiam-se cada vez mais. Um dia acordámos e ele já não reconhecia ninguém. A Leonor chorou durante horas; eu senti um vazio impossível de explicar.
Quando finalmente chegou o dia em que tivemos de levá-lo para um lar — porque já não conseguíamos cuidar dele sozinhos — senti-me culpada e aliviada ao mesmo tempo. A casa ficou mais silenciosa; os conflitos deram lugar à saudade.
Agora olho para trás e pergunto-me: será que fizemos tudo certo? Será possível amar sem magoar? E vocês… já passaram por algo assim?