O Dia em que o António Partiu: Fragmentos de uma Vida Desfeita

— António, onde vais com essa pressa toda? — perguntei, sentindo o coração apertar sem saber porquê.

Ele nem olhou para trás. Só murmurou qualquer coisa ininteligível, pegou nas chaves do carro e saiu. O som da porta a bater foi seco, definitivo. Fiquei ali, parada no corredor, com as mãos ainda húmidas da terra do jardim e a cabeça cheia de perguntas. O cheiro do café espalhava-se pela casa, misturado com o aroma das búlhas quentes que acabara de tirar do forno. Tudo parecia tão normal — e, ao mesmo tempo, tão estranho.

Voltei à cozinha, tentando convencer-me de que era só mais um dos humores do António. Nos últimos meses, ele andava diferente. Chegava tarde, evitava olhar-me nos olhos, respondia com monossílabos. Pensei que fosse o trabalho — a fábrica estava a despedir gente, e ele sempre foi orgulhoso demais para admitir fraquezas. Mas havia algo mais. Uma distância que não se media em metros, mas em silêncios.

Sentei-me à mesa, olhando para a chávena dele ainda cheia. O relógio marcava nove da manhã. Esperei. Liguei-lhe uma vez, duas, três. Nada. O telemóvel tocava até cair no voicemail. Fui ao quarto — a porta do roupeiro estava aberta, e metade das roupas dele tinha desaparecido. Os sapatos castanhos que usava aos domingos já lá não estavam. Senti um frio na barriga.

— Mãe? — A voz da minha filha Inês ecoou pelo corredor.

— O teu pai saiu — respondi, tentando soar calma.

Ela olhou para mim com aqueles olhos grandes e escuros, tão parecidos com os meus quando era nova.

— Outra vez? Ele nem me disse bom dia…

Encolhi os ombros. Não queria preocupar a Inês, mas ela já percebia mais do que eu gostava de admitir.

O dia passou arrastado. Liguei à minha irmã Teresa.

— Achas que devo ir à polícia? — perguntei-lhe, a voz trémula.

— Calma, Maria. Se calhar ele só precisa de espaço. Os homens são assim… — respondeu ela, mas percebi pela hesitação que também estava preocupada.

À noite, sentei-me sozinha na sala. A televisão ligada num qualquer programa de variedades fazia companhia ao vazio. A Inês fechou-se no quarto, zangada com o mundo ou talvez comigo por não saber dar-lhe respostas.

Os dias seguintes foram um borrão de telefonemas, idas ao trabalho (onde fingi normalidade), perguntas dos vizinhos e olhares de pena. O António não voltou. Não deixou bilhete, não atendeu chamadas, não deu sinal de vida.

Comecei a vasculhar as nossas memórias em busca de pistas. Lembrei-me das discussões recentes — pequenas coisas que se foram acumulando: o dinheiro curto, as contas por pagar, o cansaço de uma vida sempre igual. Lembrei-me também dos momentos bons: as férias em Vila Nova de Milfontes quando a Inês era pequena, os domingos no parque da cidade, as noites em que dançávamos na cozinha ao som da rádio.

Uma semana depois do desaparecimento, recebi uma mensagem anónima: “Ele está bem. Precisa de tempo.” O número era desconhecido. Mostrei à Teresa e ela ficou pálida.

— Achas que ele tem outra mulher? — perguntou baixinho.

Nunca quis acreditar nisso. Mas comecei a reparar nos detalhes: as mensagens apagadas do telemóvel dele, as saídas cada vez mais frequentes à noite, o perfume diferente na camisa branca.

A Inês começou a fechar-se cada vez mais. Um dia entrou em casa aos gritos:

— Toda a gente na escola sabe! Dizem que o pai fugiu com a mulher do senhor Joaquim! É verdade?

Senti-me esmagada pelo peso da vergonha e da impotência.

— Não sei, filha… Não sei de nada — respondi entre lágrimas.

As semanas passaram e fui obrigada a aprender a viver sozinha. A casa parecia maior, mais fria. Os amigos afastaram-se aos poucos — ninguém gosta de lidar com desgraças alheias por muito tempo. Só a Teresa continuava a aparecer todos os domingos com um bolo e palavras de conforto.

Uma tarde chuvosa, enquanto arrumava papéis antigos na gaveta do António, encontrei uma carta endereçada a ele mas nunca aberta. Era do irmão dele, o Manuel, com quem não falava há anos por causa de uma herança mal resolvida. A carta falava em reconciliação e pedia desculpa por tudo o que se tinha passado entre eles.

Fiquei horas a olhar para aquela folha amarelada. Será que o António tinha fugido para o Norte? Será que procurava recomeçar longe de mim?

Decidi ligar ao Manuel. Atendeu ao fim de muitos toques.

— Maria? Que surpresa… — disse ele com voz cansada.

Expliquei-lhe tudo entre soluços. Ele jurou não saber do paradeiro do irmão, mas prometeu avisar caso soubesse de alguma coisa.

Nessa noite sonhei com o António: estava sentado à beira-mar, de costas para mim, e quando me aproximei ele desapareceu como areia entre os dedos.

Os meses passaram devagar. Aprendi a fazer coisas sozinha: ir ao supermercado sem pressa, jantar na varanda só com o som dos pássaros como companhia, ler romances até tarde sem ter de baixar o volume da luz para não incomodar ninguém.

A Inês foi-se habituando à ausência do pai à sua maneira — ora revoltada, ora indiferente. Um dia chegou a casa com um rapaz novo e apresentou-o como namorado. Senti um misto de orgulho e tristeza: ela estava a crescer sem o pai por perto.

No Natal desse ano pus dois pratos extra na mesa: um para o António (por superstição ou esperança) e outro para quem quisesse aparecer. Só veio a Teresa e o Manuel — este último trouxe uma garrafa de vinho e um pedido de desculpas pelo passado.

— A família é tudo o que temos — disse ele ao brindar.

No fundo da noite fria senti uma pontada de saudade misturada com alívio: talvez fosse possível recomeçar mesmo sem respostas para todas as perguntas.

Um ano depois do desaparecimento do António recebi uma carta sem remetente:

“Maria,
Não procures mais por mim. Precisei partir para me encontrar longe das sombras do passado e das expectativas que nunca consegui cumprir. Peço-te perdão pelo sofrimento que causei a ti e à Inês. Espero que um dia consigas ser feliz sem mim.
António”

Li aquelas palavras vezes sem conta até as lágrimas secarem no rosto. Não havia explicação suficiente para tanto vazio deixado para trás — mas havia uma certeza: eu sobrevivi.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vidas cabem dentro de uma só? Quantas vezes podemos recomeçar depois de perder tudo? Talvez nunca saiba as respostas certas — mas sei que sou mais forte do que pensava.