Quando o Amor se Quebra: Entre a Traição e o Recomeço

— Quero o divórcio, Ana. — As palavras do Rui ecoaram pela sala como um trovão inesperado numa tarde de verão. Fiquei ali, parada, com a chávena de chá a tremer nas mãos. O relógio da parede marcava 19h12, e o cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar. O nosso filho, o Tiago, estava no quarto, alheio ao abismo que se abria debaixo dos meus pés.

— O quê? — perguntei, a voz quase sumida.

— Ouviste bem. Não dá mais. — Ele desviou o olhar, fitando o chão como se ali estivesse a resposta para tudo.

Naquele instante, lembrei-me das palavras da minha mãe: “Filha, nunca te esqueças de quem és, mesmo quando o mundo te tentar arrancar tudo.” Sempre achei aquilo um exagero, uma daquelas frases feitas para consolar corações partidos. Mas agora, sentia-as a latejar dentro de mim.

— Há outra pessoa? — arrisquei perguntar, mesmo sabendo que não queria ouvir a resposta.

O silêncio dele foi mais eloquente do que qualquer confissão. Senti uma dor aguda no peito, como se alguém me tivesse arrancado o ar dos pulmões. As lágrimas começaram a cair antes que eu pudesse controlá-las.

— O Tiago… — murmurei.

— Vamos falar com ele juntos. — A voz dele era fria, distante. O Rui que eu conhecia tinha desaparecido.

Os dias seguintes foram um nevoeiro denso. Acordava e adormecia com os olhos inchados. O Tiago chorava à noite, perguntava-me porque é que o pai já não vinha jantar connosco. Eu inventava desculpas: “O pai está a trabalhar muito.” Mas ele não era parvo. Aos doze anos já percebia mais do que eu queria admitir.

A minha irmã, a Joana, apareceu em casa com um bolo de chocolate e um abraço apertado.

— Ele não te merece, Ana. — disse ela, com raiva nos olhos. — Sempre foste tu a segurar tudo! Lembras-te quando ele ficou desempregado? Foste tu que pagaste as contas e ainda cuidaste do Tiago sozinha!

— Eu sei… mas dói tanto — respondi, sentindo-me pequena.

A minha mãe ligava todos os dias. “Filha, não deixes que isto te destrua. Tu és forte.” Mas eu sentia-me feita em cacos.

As semanas passaram e as notícias corriam depressa na vila. As vizinhas cochichavam à porta do café da Dona Lurdes:

— Ouviste? O Rui deixou a Ana por causa daquela advogada nova lá do escritório…

Senti vergonha de sair à rua. Até ir ao supermercado era uma tortura. Sentia os olhares pesados nas costas, os sorrisos falsos das pessoas que antes me cumprimentavam com carinho.

Uma noite, depois de deitar o Tiago, sentei-me no sofá e olhei para as fotografias na estante: o nosso casamento na Sé do Porto, as férias em Vila Nova de Milfontes, o aniversário do Tiago com o bolo de chocolate da Joana. Tudo parecia tão distante, como se pertencesse a outra vida.

O Rui vinha buscar o Tiago aos fins-de-semana. No início, ele evitava olhar para mim. Depois começou a trazer a tal advogada para as entregas. Ela sorria-me com aquele ar superior de quem acha que ganhou alguma coisa.

Um dia, perdi a cabeça:

— Não tens vergonha? — atirei-lhe à cara quando ela apareceu à porta.

Ela encolheu os ombros:

— O Rui merece ser feliz.

— E eu? E o Tiago? — gritei, sentindo a raiva misturada com tristeza.

O Rui puxou-a pelo braço:

— Vamos embora.

Fechei a porta com força e desabei no chão da entrada. O Tiago apareceu pouco depois.

— Mãe… vai ficar tudo bem? — perguntou ele, os olhos grandes cheios de medo.

Abracei-o com todas as forças:

— Vai sim, meu amor. Prometo que vai.

Mas eu própria não acreditava nisso.

No trabalho, as coisas também começaram a correr mal. O chefe chamou-me ao gabinete:

— Ana, tens andado distraída… Preciso de ti focada na contabilidade deste mês.

Assenti em silêncio. Sentia-me exausta, como se cada tarefa fosse uma montanha impossível de escalar.

Uma tarde, depois de mais uma discussão ao telefone com o Rui sobre as despesas do Tiago, fui ter com a minha mãe ao jardim dela. Ela estava a regar as hortênsias.

— Mãe… não aguento mais. Sinto-me sozinha. — confessei.

Ela pousou o regador e sentou-se ao meu lado no banco de pedra.

— Sabes porque é que sempre te disse para nunca te esqueceres de quem és? Porque um dia alguém pode tentar apagar-te… mas tu tens de ser mais forte do que isso. Tens o Tiago. Tens a Joana. Tens-me a mim. E tens-te a ti própria.

Chorei no colo dela como quando era criança. Pela primeira vez em semanas senti algum alívio.

Comecei a ir à psicóloga da vila. Ao princípio achei que era uma fraqueza pedir ajuda, mas percebi que precisava de alguém neutro para me ouvir sem julgamentos.

— Ana, tu não és só mãe ou mulher do Rui. És uma pessoa inteira — disse-me a Dra. Margarida na primeira sessão.

Essas palavras ficaram comigo durante dias.

Pouco a pouco comecei a recuperar pequenos pedaços de mim mesma: voltei a correr ao fim da tarde junto ao rio Douro; aceitei um convite da Joana para ir ao cinema; pintei as unhas de vermelho pela primeira vez em anos.

O Tiago também começou a sorrir mais. Uma noite fez-me um desenho: éramos nós dois de mãos dadas num campo cheio de flores amarelas.

— Somos só nós agora, mãe… mas eu gosto — disse ele com um sorriso tímido.

Aos poucos fui percebendo que podia ser feliz outra vez, mesmo sem o Rui ao meu lado. A dor não desapareceu por completo — às vezes ainda acordava com saudades do que fomos — mas já não me definia.

No Natal desse ano fizemos uma ceia só nossa: bacalhau à Brás e rabanadas da receita da avó. Rimos tanto que até me esqueci por momentos da ausência dele.

Um dia encontrei o Rui na rua com a advogada. Ele tentou cumprimentar-me mas eu segui em frente, cabeça erguida. Pela primeira vez senti pena dele — não inveja ou raiva — apenas pena por ele nunca ter conhecido verdadeiramente quem eu sou.

Agora escrevo esta história sentada na varanda do meu novo apartamento no Porto. O Tiago está a estudar para os exames e eu olho para o céu cor-de-rosa do entardecer e penso: será que algum dia voltamos mesmo a ser inteiros depois de uma traição? Ou aprendemos apenas a viver com as cicatrizes?

E vocês? Já sentiram o vosso mundo desabar e tiveram de aprender a reconstruí-lo peça por peça?