Quando o Passado Bate à Porta: O Segredo da Filha, a Provação da Família
— Mãe, não me perguntes nada agora. — As palavras da Mariana ecoaram no corredor escuro, entrecortadas pelo som da chuva a bater furiosamente nas janelas. Eu estava de robe, com o coração aos saltos, quando ela largou o pequeno Tomás nos meus braços e desapareceu escada abaixo, sem olhar para trás. Fiquei ali, paralisada, com o neto a chorar baixinho e uma angústia a crescer-me no peito.
O relógio marcava quase meia-noite. O vento uivava lá fora como se quisesse arrancar as telhas do telhado. Sentei-me no sofá com o Tomás ao colo, tentando acalmá-lo e a mim própria. “O que é que aconteceu? Para onde foi a Mariana?” A minha cabeça fervilhava de perguntas. O telefone dela ia diretamente para o voicemail. Liguei ao Pedro, o pai do Tomás, mas ele atendeu com voz arrastada e desligou assim que ouviu o meu nome.
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o rosto sereno do Tomás, já adormecido, e lembrei-me da primeira vez que peguei na Mariana ao colo. Era tão pequena e frágil… Como é que chegámos aqui? Onde é que falhei como mãe?
Na manhã seguinte, tentei manter a rotina para o bem do Tomás. Preparei-lhe o pequeno-almoço, vesti-o com uma camisola de lã azul que lhe ficava grande demais. O silêncio da casa era pesado. Cada vez que o telefone tocava, o meu coração disparava — mas nunca era a Mariana.
Os dias passaram devagar. Fui à polícia, mas disseram-me que só podiam agir se houvesse indícios de perigo real. “Ela é adulta, dona Maria do Carmo”, disseram-me com um encolher de ombros. Senti-me impotente. O Pedro apareceu uma vez para ver o filho, mas estava alterado, cheirava a álcool e mal olhou para mim.
A vizinha D. Amélia começou a cochichar no prédio. “A Mariana sempre foi esquisita…”, ouvi-a dizer à D. Lurdes no elevador. Senti uma raiva surda — ninguém sabia o que se passava dentro destas paredes, ninguém sabia das noites em claro, das discussões abafadas, dos sonhos adiados.
Uma tarde, enquanto arrumava o quarto da Mariana, encontrei uma carta escondida entre os livros de faculdade. As mãos tremiam-me ao abrir o envelope.
“Mãe,
Se estás a ler isto é porque precisei de fugir. Não aguento mais o Pedro, nem esta vida de mentira. Sei que te desiludi tantas vezes… Mas acredita que tudo o que faço é pelo Tomás. Preciso de tempo para me encontrar. Cuida dele por mim — eu volto quando puder.
Amo-te.
Mariana”
As lágrimas caíram-me pelo rosto sem controlo. Senti um misto de alívio e revolta. Como é que ela me podia fazer isto? Como é que teve coragem de abandonar o filho?
Os dias transformaram-se em semanas. O Tomás perguntava pela mãe todas as noites.
— A mamã já vem? — perguntava ele com os olhos grandes e tristes.
— Vem, meu amor… — respondia eu, tentando sorrir.
Comecei a evitar os olhares dos vizinhos e até das minhas irmãs. A minha irmã Teresa ligava todos os dias:
— Maria do Carmo, não podes continuar assim! Tens de pensar em ti!
Mas como podia pensar em mim quando a minha filha estava desaparecida e o meu neto dependia de mim?
Uma noite, depois de adormecer o Tomás, sentei-me à mesa da cozinha com uma chávena de chá frio e deixei-me levar pelas memórias. Lembrei-me do pai da Mariana — o António — e de como ele nos deixou quando ela tinha apenas oito anos. Talvez tenha sido aí que tudo começou a correr mal… Talvez eu nunca tenha conseguido ser mãe e pai ao mesmo tempo.
O Pedro apareceu outra vez, desta vez mais calmo.
— Preciso de falar contigo — disse ele sem rodeios.
Sentámo-nos frente a frente na sala.
— Sabes onde está a Mariana?
— Não faço ideia — respondi.
Ele passou as mãos pelo cabelo, desesperado.
— Ela fugiu por tua causa? Sempre foste tão controladora…
As palavras dele foram como facas.
— Eu só tentei proteger a minha filha! — gritei-lhe.
Ele levantou-se bruscamente.
— Se ela não voltar, vou pedir a guarda do Tomás!
Fiquei gelada. O Pedro podia ser pai biológico, mas nunca foi presente. E agora queria tirar-me o único pedaço da Mariana que me restava?
Nessa noite chorei até não ter mais lágrimas. Senti-me sozinha como nunca antes na vida.
No dia seguinte fui buscar o Tomás ao infantário e encontrei-o sentado sozinho num canto do recreio. A educadora chamou-me à parte:
— Dona Maria do Carmo… O Tomás anda muito calado. Desenha sempre uma senhora triste…
Senti um aperto no peito. O sofrimento dele era maior do que eu imaginava.
Decidi procurar ajuda. Marquei consulta com uma psicóloga infantil para o Tomás e comecei também eu a ir à consulta da Dra. Filipa.
— Maria do Carmo, não pode carregar tudo sozinha — disse-me ela na primeira sessão.
Falei-lhe das minhas culpas, dos meus medos, da raiva que sentia pela Mariana e pelo António… E por mim própria.
Os meses foram passando. O Tomás começou a sorrir mais vezes e eu aprendi a aceitar que não podia controlar tudo nem todos. Mas nunca deixei de esperar pela Mariana.
Na véspera do aniversário do Tomás, ouvi baterem à porta já depois das dez da noite. O meu coração quase parou quando vi a Mariana à porta: magra, olheiras profundas, mas com um brilho estranho nos olhos.
— Mãe… — sussurrou ela antes de se desfazer em lágrimas nos meus braços.
Ficámos abraçadas muito tempo sem dizer nada.
Quando finalmente nos sentámos à mesa da cozinha, ela contou-me tudo: tinha fugido para casa de uma amiga em Braga para fugir ao Pedro, que se tornara cada vez mais agressivo e controlador. Tinha medo por ela e pelo Tomás.
— Não sabia como te contar… Tive vergonha — confessou ela.
Senti um nó na garganta ao ouvir-lhe as palavras.
— Devias ter confiado em mim — disse-lhe baixinho.
Ela olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas:
— Sempre tive medo de te desiludir…
Abracei-a com força.
No dia seguinte celebrámos o aniversário do Tomás juntos pela primeira vez em muitos meses. Ele correu para os braços da mãe como se nada tivesse acontecido.
A vida não voltou ao que era antes — nunca volta — mas aprendemos a viver com as cicatrizes. A Mariana começou terapia e arranjou um trabalho novo. O Pedro afastou-se depois de perceber que não podia controlar-nos mais.
Às vezes ainda acordo sobressaltada durante a noite, assustada com a ideia de perder tudo outra vez. Mas olho para o Tomás e para a Mariana e sinto uma esperança tímida a crescer dentro de mim.
Será possível perdoar verdadeiramente quem amamos? Ou será que as feridas ficam sempre à flor da pele? E vocês — já sentiram esta mistura de amor e mágoa dentro da vossa própria família?