Dez Anos de Espera: O Silêncio de Isabella e o Peso das Escolhas

— Isabella, não podes continuar assim! — A voz da minha sogra, Maria, ecoava pela cozinha fria, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer. — Já passaram dez anos! O Nathan não aguenta mais sozinho.

Fiquei ali, sentada à mesa, com as mãos entrelaçadas no colo. O olhar dela queimava-me a pele, mas eu não conseguia encará-la. O relógio da parede marcava 7h15. Daqui a pouco, Nathan sairia para mais um turno na fábrica de cerâmica. Eu sabia que ela tinha razão. Sabia-o há anos. Mas as palavras ficavam presas na garganta, como se confessar a minha fraqueza fosse pior do que continuar a viver assim.

— Eu… eu não estou pronta, Maria. — A minha voz saiu num sussurro, quase inaudível.

Ela bufou, impaciente. — Pronta para quê? Para viver? Para ajudar o teu marido? Até a tua mãe, Deus a tenha, dizia que tu eras teimosa como uma mula! — A menção à minha mãe fez-me estremecer. Desde que ela morreu, há seis anos, sentia-me ainda mais sozinha naquela casa enorme da avó do Nathan.

Nathan entrou na cozinha nesse momento, já de mochila ao ombro. Olhou para mim e depois para a mãe, percebendo imediatamente o clima pesado.

— Outra vez? — murmurou ele, cansado. — Mãe, deixa estar. Eu trato disso.

Maria saiu da cozinha a resmungar, deixando-nos num silêncio desconfortável. Nathan sentou-se ao meu lado e pousou a mão sobre a minha.

— Isabella… — começou ele, com uma ternura que me fazia doer ainda mais. — Eu sei que não é fácil. Mas precisamos mesmo desse dinheiro extra. A fábrica vai mal, e se eu perder o emprego… — Não terminou a frase. Não precisava.

Lembrei-me do anúncio que Maria me tinha mostrado há semanas: “Procura-se ajudante de loja, part-time, horário flexível”. Era numa papelaria no centro da vila. Trabalho simples, perto de casa. Mas só de pensar em sair dali, enfrentar pessoas, lidar com clientes… O peito apertava-se-me.

— Não consigo, Nathan. Não agora.

Ele suspirou fundo e levantou-se. — Um dia vais ter de conseguir, Isabella. Por nós.

Quando ele saiu para o trabalho, fiquei sozinha com os meus pensamentos e os olhares julgadores das fotografias antigas na parede da sala. A avó do Nathan sorria-me de um retrato amarelado; ela tinha sido uma mulher forte, criada no campo, viúva aos quarenta anos e mãe de cinco filhos. Perguntei-me o que ela pensaria de mim agora.

Os dias passavam lentos naquela casa grande demais para três pessoas. Maria ocupava-se com as lides domésticas e com as suas novelas; eu fingia ajudar, mas passava horas no quarto, olhando pela janela para o quintal onde as roseiras cresciam selvagens desde que a avó morreu.

À noite, quando Nathan chegava cansado e suado do trabalho, sentávamo-nos à mesa em silêncio. O dinheiro era contado ao cêntimo: arroz e massa comprados em promoção, carne só ao fim-de-semana. As contas empilhavam-se numa gaveta da cozinha; eu sabia de cor cada valor em atraso.

Certa tarde, ouvi Maria ao telefone com uma vizinha:

— Não sei o que fazer mais com aquela rapariga… Dez anos sem trabalhar! O Nathan está a definhar… — A voz dela tremia entre a raiva e a preocupação.

Senti uma vergonha tão funda que me faltou o ar. Quis correr até ela e gritar que não era preguiça, que havia um medo dentro de mim maior do que tudo: medo de falhar, medo de não ser suficiente, medo de sair daquela rotina onde pelo menos sabia o que esperar.

Mas calei-me. Como sempre.

Naquela noite, Nathan chegou mais tarde do que o habitual. Trazia um envelope na mão e um olhar sombrio.

— Cortaram-me horas na fábrica — disse ele sem rodeios. — Vamos receber menos este mês.

Maria largou o prato na mesa com estrondo. — Vês? Era isto que eu temia! Isabella, tu tens de fazer alguma coisa!

Nathan olhou-me nos olhos. Pela primeira vez em anos vi ali não só cansaço, mas também desilusão.

— Eu amo-te — disse ele baixinho — mas não posso continuar sozinho nesta luta.

Fui para o quarto antes que as lágrimas me traíssem diante deles. Deitei-me na cama e abracei a almofada como se fosse um salva-vidas num mar revolto. Lembrei-me dos primeiros tempos com Nathan: éramos jovens e apaixonados, sonhávamos viajar pelo país inteiro de mochila às costas. Depois veio o desemprego dele, depois o meu pânico constante de não conseguir corresponder às expectativas da família dele… E fui ficando ali, parada no tempo.

No dia seguinte acordei cedo com um peso no peito impossível de ignorar. Maria já estava na cozinha; nem me olhou quando entrei.

— Vou à vila tratar das compras — disse ela secamente.

Fiquei sozinha outra vez. Olhei para o anúncio da papelaria colado no frigorífico com um íman em forma de sardinha. Peguei no telefone e disquei o número com as mãos a tremer.

— Papelaria Central? Fala a Teresa.

Engoli em seco. — Bom dia… Chamo-me Isabella… Vi o anúncio para ajudante de loja…

A voz do outro lado era calorosa. — Ainda está disponível! Pode vir cá amanhã para falarmos?

Desliguei o telefone com o coração aos pulos. Senti uma mistura de alívio e terror: finalmente ia tentar sair daquele ciclo vicioso… mas e se falhasse? E se todos tivessem razão sobre mim?

Quando contei ao Nathan à noite, ele abraçou-me com força inesperada.

— Estou tão orgulhoso de ti! — murmurou ele ao meu ouvido.

Maria limitou-se a acenar com a cabeça, mas vi um brilho diferente nos olhos dela.

Na manhã seguinte vesti-me com as melhores roupas que tinha: umas calças pretas antigas e uma blusa azul clara que a minha mãe me tinha oferecido antes de morrer. Caminhei até à vila sentindo cada passo como uma batalha vencida contra mim mesma.

A entrevista foi simples; Teresa era simpática e paciente. Falámos das tarefas básicas: arrumar livros e cadernos, atender clientes, manter a loja limpa.

— Não se preocupe se nunca trabalhou antes — disse ela sorrindo — todos começamos por algum lado.

Saí dali com um sorriso tímido nos lábios e uma promessa de começar na semana seguinte.

Quando cheguei a casa, Maria estava à janela da sala. Pela primeira vez em muito tempo chamou-me pelo nome:

— Isabella… vem cá tomar um chá comigo.

Sentei-me à mesa enquanto ela preparava duas chávenas fumegantes.

— Sabes… eu também tive medo quando casei com o pai do Nathan — confessou ela de repente. — Tinha só dezassete anos e nunca tinha saído da casa dos meus pais… Mas aprendi que às vezes temos de cair para aprender a levantar-nos.

Olhei para ela surpreendida; nunca antes tinha partilhado algo tão pessoal comigo.

— Obrigada por não desistires de mim — disse-lhe baixinho.

Ela sorriu e apertou-me a mão por cima da mesa.

Naquela noite contei tudo ao Nathan; ele chorou comigo pela primeira vez desde que nos conhecemos.

Os dias seguintes foram difíceis: aprendi devagarinho as rotinas da loja, errei vezes sem conta mas Teresa nunca perdeu a paciência comigo. Aos poucos fui ganhando confiança; os clientes começaram a cumprimentar-me pelo nome e até Maria passou a perguntar como tinha corrido o dia quando eu chegava a casa.

O dinheiro era pouco mas suficiente para aliviar as contas; mais importante ainda era sentir que finalmente fazia parte daquela família não só como esposa ou nora dependente mas como alguém capaz de contribuir para o nosso futuro.

Hoje olho para trás e vejo quanto tempo perdi presa ao medo e ao orgulho. Pergunto-me quantas mulheres em Portugal vivem assim: caladas nas suas casas grandes demais para os sonhos pequenos que lhes restam…

Será que valeu a pena esperar tanto tempo? Ou será que só aprendemos mesmo quando já não temos outra escolha senão mudar?