Quando o Meu Filho e a Nora Voltaram para Casa: Entre o Amor e o Limite
— Mãe, podes não fazer barulho na cozinha depois das dez? A Catarina tem o sono leve — disse o Rui, com aquele tom calmo que sempre usava quando queria evitar discussões, mas que, para mim, soava a um pedido impossível.
Olhei para ele, com a chávena de chá ainda quente nas mãos, e senti um nó apertar-se-me no peito. A minha casa sempre foi o meu refúgio, o meu pequeno mundo onde podia ser quem quisesse, à hora que quisesse. Agora, sentia-me uma intrusa no meu próprio lar.
Tudo começou há três meses, quando o Rui perdeu o emprego na consultora e a Catarina, professora contratada, viu o contrato não ser renovado. Vieram ter comigo num domingo chuvoso, com duas malas e um olhar de quem já tinha chorado tudo. “É só por uns tempos, mãe”, disseram. Eu sorri, abri-lhes a porta e preparei-lhes o quarto de hóspedes. Mas ninguém me preparou para o que vinha aí.
Na primeira semana, tentei manter as rotinas. Levantava-me cedo, punha a rádio a tocar na cozinha enquanto fazia o pequeno-almoço. Mas logo ouvi a porta do quarto abrir-se e a Catarina aparecer de robe, olhos semicerrados:
— D. Teresa, desculpe, mas será que pode baixar um bocadinho? Preciso mesmo de dormir mais um pouco…
Senti-me uma criança repreendida. Baixei o volume, claro. Mas aquele pedido ficou-me atravessado.
Os dias foram passando e as pequenas concessões tornaram-se regras silenciosas. O Rui começou a trabalhar remotamente na sala — “Mãe, preciso de silêncio para as reuniões” — e eu passei a almoçar sozinha na cozinha. A Catarina ocupava-se a enviar currículos e a fazer videochamadas com amigas, sempre com a porta fechada.
À noite, tentava manter alguma normalidade. Fazia o jantar para todos, punha a mesa como sempre fizera. Mas até aí havia tensão:
— Mãe, não ponhas tanto sal — dizia o Rui.
— D. Teresa, eu sou vegetariana agora — avisou-me a Catarina ao fim da primeira semana.
Senti-me perdida. O que era suposto cozinhar? O que era suposto dizer? Comecei a sentir medo de ocupar espaço, medo de incomodar.
Uma noite, depois de um jantar particularmente silencioso, ouvi-os discutir no quarto. As paredes finas não escondiam nada:
— Não podemos ficar aqui para sempre! — sussurrava a Catarina.
— Eu sei! Mas onde é que queres que vá? Não tenho dinheiro nem trabalho!
Deitei-me sem sono. Ouvia cada passo deles pela casa como se fossem marteladas no meu peito. Senti raiva — deles, da situação, de mim própria por não conseguir impor limites.
No domingo seguinte, a minha irmã Helena veio visitar-me. Mal entrou na cozinha percebeu o ambiente carregado.
— Teresa, estás bem?
Desabei em lágrimas. Contei-lhe tudo: como me sentia uma estranha na minha própria casa, como tinha medo de abrir a boca ou ligar a televisão.
— Tens de falar com eles — disse ela. — Isto não é vida para ninguém.
Mas como? Como é que se diz ao próprio filho que está a mais? Como é que se pede espaço sem parecer ingrata ou egoísta?
Tentei várias vezes começar essa conversa. Uma manhã apanhei o Rui sozinho na sala:
— Rui… precisamos de falar sobre como estamos todos aqui em casa…
Ele olhou-me com olhos cansados:
— Mãe, eu sei que não é fácil. Mas acredita que estamos a fazer tudo para sair daqui.
Quis dizer-lhe que não era só isso. Que eu precisava do meu espaço, do meu silêncio, das minhas rotinas. Mas calei-me.
Os dias tornaram-se mais pesados. Comecei a sair mais vezes só para respirar: ia ao café da esquina ler o jornal, dava voltas no jardim do bairro só para sentir o sol na cara sem ter de pedir licença.
Uma tarde encontrei a vizinha D. Amélia no elevador:
— Então Teresa, agora tem casa cheia! Deve ser uma alegria!
Sorri sem vontade. Alegria? Era suposto ser alegria? Ou era só mais uma obrigação de mãe?
Naquela noite não consegui dormir. Levantei-me e fui até à varanda. Olhei Lisboa iluminada e perguntei-me: quando é que deixei de ser dona da minha vida?
No dia seguinte tomei coragem. Esperei que estivessem os dois na sala e sentei-me à frente deles.
— Precisamos de conversar — disse eu, com voz trémula mas firme.
O Rui olhou para mim assustado. A Catarina baixou os olhos.
— Eu amo-vos muito. E quero ajudar-vos. Mas esta casa também é minha. Preciso do meu espaço, das minhas rotinas… Preciso sentir que ainda sou eu aqui dentro.
Houve um silêncio pesado.
— Mãe… desculpa — murmurou o Rui. — Não tínhamos percebido…
A Catarina olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas:
— Tem razão, D. Teresa. Fomos egoístas.
Chorámos os três nesse dia. E combinámos pequenas regras: horários para usar as divisões comuns, dias em que cada um cozinhava, momentos só meus.
Não foi fácil. Ainda hoje há dias em que me sinto uma hóspede na minha própria casa. Mas aprendi que amar também é saber dizer basta.
Agora pergunto-me: quantas mães vivem assim em silêncio? Quantos pais têm medo de pedir espaço aos filhos adultos? Será egoísmo querer ser feliz na própria casa?