Quando o Sangue nos Trai: A História de Sofia e Eu

— Não me olhes assim, tia Helena. Eu juro que não fiz nada de mal! — A voz da Sofia ecoava pelo corredor, trémula, quase a roçar o desespero. Mas naquele momento, já não conseguia distinguir se era medo de ser apanhada ou apenas mais uma das suas manipulações.

O relógio da sala marcava quase meia-noite. O silêncio da casa era cortado apenas pelo som do meu próprio coração a bater descompassado. Tinha acabado de encontrar a minha carteira vazia na gaveta do meu quarto — onde nunca ninguém mexia. E, pela terceira vez naquele mês, faltava dinheiro.

Sofia tinha chegado à minha porta há seis meses, com uma mochila às costas e os olhos inchados de tanto chorar. A mãe dela, minha irmã mais nova, tinha emigrado para França à procura de trabalho e deixara-a comigo temporariamente. “Só até eu me estabilizar, mana”, disse-me ao telefone. “A Sofia precisa de ti agora.”

Na altura, não hesitei. Sempre fui aquela pessoa que acredita que a família é sagrada, que devemos estar lá uns para os outros, principalmente nos momentos difíceis. Recebi Sofia como se fosse minha filha. Preparei-lhe o quarto de hóspedes, comprei-lhe roupa nova e tentei preencher o vazio que a ausência da mãe lhe deixara.

No início, tudo parecia correr bem. Sofia era reservada, mas educada. Ajudava-me nas tarefas domésticas e até começou a tirar boas notas na escola secundária do bairro. Eu sentia-me orgulhosa por conseguir dar-lhe estabilidade.

Mas as pequenas coisas começaram a mudar. Primeiro, foram os atrasos a chegar a casa. Depois, as respostas tortas quando lhe perguntava onde tinha estado. Uma vez, encontrei um maço de tabaco escondido entre os livros dela. Confrontei-a:

— Sofia, isto é teu? Sabes que não podes fumar cá em casa.

Ela encolheu os ombros e murmurou:

— Toda a gente fuma na escola, tia. Não é nada demais.

Tentei ser compreensiva. Lembrei-me dos meus próprios tempos de adolescência rebelde e pensei que era uma fase passageira. Mas o dinheiro começou a desaparecer. Primeiro pequenas quantias — uma nota de dez euros aqui, outra ali. Depois, cinquenta euros que eu guardava para pagar a eletricidade.

Confrontei-a várias vezes. Ela negava sempre:

— Juro que não fui eu! Talvez tenhas perdido…

Comecei a duvidar de mim própria. Será que estava mesmo a ficar esquecida? Mas naquela noite, ao encontrar a carteira vazia e ver o olhar fugidio da Sofia, soube que não podia continuar a enganar-me.

— Sofia, olha para mim — pedi-lhe, tentando manter a voz firme apesar das lágrimas que ameaçavam cair. — Preciso que me digas a verdade. Foste tu?

Ela ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder. Finalmente, murmurou:

— Eu só queria comprar umas coisas… Não queria magoar-te.

O chão fugiu-me dos pés. Senti-me traída por alguém em quem tinha depositado todo o meu amor e confiança. Lembrei-me das noites em que ficava acordada à espera dela, preocupada se estaria bem; das vezes em que abdiquei dos meus próprios planos para ir buscá-la à escola ou ao treino de voleibol.

A discussão naquela noite foi longa e dolorosa. Sofia chorou, gritou, bateu com portas. Eu tentei explicar-lhe que o problema não era o dinheiro em si, mas a confiança quebrada.

— Como é que queres que eu confie em ti agora? — perguntei-lhe, sem conseguir conter o desespero na voz.

Ela não respondeu. No dia seguinte, saiu de casa cedo e só voltou ao anoitecer. Não trocámos uma palavra durante o jantar.

Os dias seguintes foram um tormento silencioso. A minha irmã ligava de França todos os domingos e eu hesitava em contar-lhe o que se estava a passar. Sentia-me culpada — será que falhei como tia? Será que devia ter sido mais dura desde o início?

Uma tarde, recebi uma chamada da escola: Sofia tinha sido apanhada a roubar um telemóvel na mochila de uma colega. O diretor pediu-me para ir lá imediatamente.

No gabinete do diretor, vi Sofia sentada com os olhos vermelhos e as mãos trémulas.

— Tia Helena… desculpa… — sussurrou ela quando ficámos sozinhas.

Eu já não sabia o que dizer ou sentir. Por um lado, queria abraçá-la e protegê-la do mundo; por outro, sentia uma raiva surda por tudo o que ela me estava a fazer passar.

Quando chegámos a casa nesse dia, sentei-me com ela na sala e tentei conversar calmamente:

— Sofia, eu amo-te como se fosses minha filha. Mas não posso continuar assim. Precisas de ajuda — disse-lhe.

Ela chorou nos meus braços como uma criança pequena. Pela primeira vez em meses, senti que talvez houvesse esperança.

Procurei apoio junto da escola e marquei consultas com uma psicóloga local. Sofia começou a ir às sessões, mas o caminho foi tudo menos fácil. Houve recaídas, discussões acesas e portas batidas.

A minha relação com a minha irmã também sofreu. Quando finalmente lhe contei tudo ao telefone, ela ficou furiosa comigo:

— Como é possível? Sempre foste tão rígida! Achas mesmo que ela faria isso se te sentisse próxima?

As palavras dela magoaram-me profundamente. Senti-me sozinha e incompreendida — como se todo o peso do fracasso recaísse sobre mim.

Os meses passaram devagar. Aos poucos, Sofia começou a mudar: voltou a estudar com afinco e arranjou um pequeno trabalho numa pastelaria local para pagar parte das suas despesas pessoais. Nunca mais desapareceu dinheiro em casa.

Mas as feridas ficaram. A confiança entre nós nunca voltou a ser igual. Ainda hoje olho para ela com um misto de orgulho e tristeza — orgulho pelo caminho difícil que percorreu; tristeza pelo preço alto que ambas pagámos.

Às vezes pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente uma traição vinda de quem mais amamos? Ou será que certas cicatrizes nunca desaparecem?

E vocês? Já sentiram o peso de uma traição dentro da própria família? Como conseguiram seguir em frente?