Quando Aceitei Registar o Carro do Meu Irmão em Meu Nome: Uma História de Confiança, Família e Dívidas

— Mariana, por favor, só preciso que assines aqui. É só para registar o carro no teu nome, não tem problema nenhum. — A voz do meu irmão, Rui, tremia um pouco, mas os olhos dele suplicavam. Estávamos sentados à mesa da cozinha da nossa mãe, com o cheiro do café acabado de fazer a pairar no ar. Eu olhava para o papel à minha frente, sentindo um aperto no peito que não sabia explicar.

— Rui, tens a certeza? Porque é que não registas tu? — perguntei, tentando manter a voz firme. Ele desviou o olhar, mexendo nervosamente no telemóvel.

— Sabes como é… Ainda tenho umas multas antigas e a seguradora não me aceita. Mas prometo que pago tudo direitinho. Só preciso disto para poder ir trabalhar. — O Rui sempre foi assim: cheio de sonhos, mas com uma nuvem de problemas a pairar sobre ele.

Assinei. Por amor, por confiança, por aquela esperança ingénua de que tudo ia correr bem. Não contei nada à mãe. O pai já não estava connosco há anos — foi-se embora quando eu tinha dezassete e o Rui treze — e desde então éramos só nós três. Sempre senti que tinha de proteger o meu irmão, mesmo quando ele se metia em sarilhos.

Durante uns meses, tudo correu normalmente. O Rui arranjou trabalho numa oficina em Almada e vinha jantar a casa ao domingo. A mãe sorria mais, eu sentia-me útil. Mas depois começaram as chamadas estranhas.

— Mariana Silva? Fala da empresa de cobranças XYZ. Tem uma dívida pendente referente ao veículo com matrícula XX-YY-ZZ…

O sangue gelou-me nas veias. Liguei ao Rui imediatamente.

— Rui, o que é isto? Estão-me a ligar por causa de dívidas do carro!

— Calma, mana! É só um atraso no seguro, já trato disso amanhã. Não te preocupes! — Mas a voz dele soava cansada, distante.

Os meses passaram e as cartas começaram a chegar. Primeiro uma multa por excesso de velocidade na Ponte 25 de Abril. Depois outra por estacionamento indevido em Setúbal. Depois uma carta do IMT: o carro estava apreendido por falta de inspeção.

A mãe começou a perceber que algo não estava bem. Uma noite, enquanto lavava a loiça comigo ao lado, perguntou:

— Mariana, tens andado tão calada… Está tudo bem contigo e com o Rui?

Quis contar-lhe tudo ali mesmo, mas calei-me. Não queria preocupar ainda mais a minha mãe, já tão cansada da vida.

O pior veio quando recebi uma carta do tribunal: havia um processo em meu nome por falta de pagamento do imposto único de circulação e das multas acumuladas. Fiquei sem chão.

— Rui! Isto já não é só um atraso! Vão penhorar-me o ordenado! — gritei-lhe ao telefone, lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.

Ele apareceu em casa nessa noite, olhos vermelhos, barba por fazer.

— Desculpa, mana… Eu tentei resolver… Mas perdi o emprego há dois meses e não quis preocupar-te…

A mãe ouviu tudo da porta da cozinha. Entrou devagarinho e sentou-se à nossa frente.

— Vocês são irmãos. Têm de se ajudar, mas também têm de ser honestos uns com os outros. Mariana, nunca devias ter posto nada no teu nome sem saberes ao certo no que te estavas a meter. Rui, tens de assumir as tuas responsabilidades.

A discussão durou horas. Gritámos, chorámos, dissemos coisas que nunca devíamos ter dito. O Rui saiu porta fora e não voltou durante semanas.

Fiquei sozinha com as dívidas e a vergonha. Tive de pedir um empréstimo ao banco para pagar tudo e evitar que me penhorassem o ordenado. Passei noites sem dormir, a pensar como tinha sido tão ingénua.

A relação com o Rui ficou fria durante meses. A mãe tentava juntar-nos aos domingos, mas eu evitava-o. Sentia-me traída e usada.

Um dia, ele apareceu à porta com um envelope na mão.

— Mariana… Consegui arranjar trabalho numa empresa de mudanças em Lisboa. Aqui está algum dinheiro para começares a pagar o empréstimo… Sei que nunca vou conseguir compensar tudo o que te fiz passar, mas quero tentar.

Olhei para ele e vi o meu irmão mais novo ali — perdido, arrependido, mas ainda meu irmão.

— Não é só dinheiro que resolve isto, Rui… — disse-lhe baixinho. — É confiança. E isso demora tempo a recuperar.

Aos poucos fomos reconstruindo a nossa relação. Mas ficou sempre uma sombra entre nós — aquela sensação de que basta um pequeno deslize para tudo voltar atrás.

Hoje olho para trás e pergunto-me: até onde devemos ir por quem amamos? Quando é que ajudar se transforma em ser ingénuo? Será que alguma vez voltamos a confiar plenamente depois de uma traição destas?

E vocês? Já passaram por algo assim? Até onde iriam por um irmão?