O Apartamento da Rua das Flores: Entre Heranças e Feridas

— Teresa, já pensaste no que vais fazer com o apartamento quando… bem, quando já cá não estiveres? — A voz da minha irmã, Lúcia, ecoou pela sala, cortando o silêncio como uma faca afiada. Eu estava sentada na poltrona azul, aquela que comprei com o meu primeiro ordenado, e senti o coração apertar-se no peito. Não era a primeira vez que o assunto surgia, mas cada vez doía mais.

Olhei para ela, tentando decifrar se havia algum traço de carinho ou apenas aquela ansiedade gananciosa que lhe via nos olhos desde que a nossa mãe morreu. O apartamento na Rua das Flores era pequeno, mas era meu. Meu refúgio, meu orgulho, meu lar. E agora parecia ser apenas um prémio para quem sobrevivesse à minha existência.

— Ainda não decidi, Lúcia. — respondi, tentando manter a voz firme. — Mas não me parece que seja assunto para agora.

Ela suspirou, impaciente. — Teresa, tens 68 anos. Não tens filhos, não tens marido… Não faz sentido deixares isto para estranhos ou para o Estado. Somos família.

Família. Que palavra amarga se tornou. Desde que fiquei viúva há dez anos, a solidão tornou-se minha companheira. Os jantares de domingo foram rareando, as visitas transformaram-se em telefonemas apressados. Só voltaram a aparecer quando souberam que tinha feito obras na casa e que o valor do apartamento tinha subido.

Lembro-me de quando éramos crianças e dividíamos um quarto húmido em Almada. Lúcia era a minha confidente, a minha melhor amiga. Agora era uma estranha com quem partilhava sangue e pouco mais.

Naquela noite, depois de ela sair batendo a porta com força, sentei-me à mesa da cozinha e escrevi uma carta para o meu advogado. Pedi-lhe para marcar uma reunião urgente. Não queria deixar nada ao acaso.

Os dias seguintes foram um desfile de telefonemas e mensagens dos meus sobrinhos. O João queria saber se podia usar a garagem para guardar a mota nova. A Mariana perguntou se podia ficar com os livros antigos do meu falecido marido. Todos tinham um pedido, todos queriam uma parte de mim — ou melhor, do que era meu.

No escritório do Dr. Álvaro, expliquei-lhe tudo.

— Teresa, compreendo a sua preocupação — disse ele, olhando-me por cima dos óculos. — Mas tem todo o direito de decidir o destino dos seus bens. Já pensou em doar o apartamento em vida?

Pensei nisso durante dias. Doar? Mas a quem? Às vezes sentia vontade de deixar tudo para uma instituição de caridade ou para a vizinha D. Rosa, que me traz sopa quando estou doente. Mas será justo? Será vingança ou justiça?

Uma tarde, Lúcia voltou à carga. Desta vez trouxe o João consigo.

— Tia Teresa, sabes que eu sempre gostei deste bairro — começou ele, sorrindo com aquele ar de menino bem comportado que usava para conseguir tudo da mãe. — Se precisares de ajuda com as compras ou com as contas, posso tratar disso…

Olhei para ele e vi o rapazinho que ajudei a criar quando a Lúcia ficou desempregada. Mas agora só via interesse nos olhos dele.

— João, agradeço a oferta, mas não preciso de nada — respondi seca.

Ele trocou um olhar rápido com a mãe e percebi que tinham combinado tudo antes de virem.

— Teresa — disse Lúcia num tom mais baixo — não compliques as coisas. Somos tua família. Não faças disso um drama.

Levantei-me devagar e encarei-a.

— O drama não fui eu que criei, Lúcia. O drama é perceber que só me procuram por causa do apartamento. Onde estavam quando precisei de companhia? Quando estive internada há dois anos? Onde estavam nos meus aniversários?

Ela ficou vermelha e desviou o olhar.

— Não é justo falares assim…

— Não é justo viver assim! — gritei, surpreendendo-me com a força da minha voz.

Depois disso, passaram semanas sem me falarem. Senti-me culpada e aliviada ao mesmo tempo. A solidão pesava mais, mas pelo menos era honesta.

Numa manhã chuvosa de novembro, recebi uma carta da Mariana. Dizia que sentia saudades dos tempos em que fazíamos bolos juntas e pedia desculpa se tinha parecido interesseira. Queria visitar-me para conversar.

Quando ela chegou, trazia um bolo de laranja ainda quente.

— Tia Teresa… — começou ela, hesitante — Eu sei que temos sido injustos contigo. Acho que todos ficámos cegos com a ideia da herança…

Sentei-me ao lado dela e chorei pela primeira vez em meses. Chorei pela infância perdida, pela família desfeita e por mim mesma.

— Mariana… eu só queria sentir-me amada por quem sou, não pelo que tenho.

Ela abraçou-me forte e prometeu mudar as coisas. Não sei se acredito nela, mas naquele momento precisei acreditar.

Dias depois, reuni toda a família cá em casa. O ambiente estava tenso; todos sabiam ao que vinham.

— Quero deixar claro — comecei — que ainda estou viva e lúcida. O apartamento é meu enquanto cá estiver e não admito mais pressões ou insinuações sobre heranças.

O silêncio foi pesado como chumbo. O João olhou para o chão; Lúcia cruzou os braços; Mariana chorava baixinho.

— Quando chegar a altura certa — continuei — tomarei a decisão que achar justa. Até lá, quero paz na minha casa.

Saíram um a um, sem protestos nem abraços. Fiquei sozinha na sala, ouvindo o eco das suas ausências.

Hoje escrevo esta história porque sei que não sou a única nesta situação. Quantos pais, avós ou tios vivem rodeados de gente à espera da sua morte? Quantos sentem o peso da solidão misturada com o medo da ganância?

Às vezes pergunto-me: será possível reconstruir laços depois de tanta mágoa? Ou será que certas feridas nunca saram? Se fosse convosco… o que fariam?