A Sombra do Meu Pai: Entre o Perdão e o Limite

— Mariana, não me podes negar isto. Sou teu pai! — A voz do meu pai ecoava pela cozinha, rouca, mas ainda assim autoritária, como sempre fora. Eu estava de costas para ele, as mãos trémulas a agarrar a bancada, tentando controlar a respiração. O cheiro do café queimado misturava-se ao peso daquela manhã.

Lembro-me de pensar: como é que se diz não ao próprio pai? Como é que se recusa um pedido de vida ou morte àquele que, apesar de tudo, me deu a vida? Mas também me lembrava de cada noite em que chorei em silêncio, das palavras duras, dos castigos injustos, dos silêncios gelados à mesa. Cresci em Lisboa, num T2 pequeno de Chelas, onde o frio do inverno parecia sempre mais intenso dentro de casa do que lá fora. O meu pai, António, era serralheiro — homem de poucas palavras e muitos gritos. A minha mãe, Rosa, era o tampão entre nós, mas morreu cedo demais para me ensinar a sobreviver-lhe.

— Mariana, olha para mim! — insistiu ele.

Virei-me devagar. O rosto dele estava marcado pela doença e pelo tempo. Os olhos, outrora duros como pedra, agora pareciam pedir clemência. Mas eu sabia o que ele era capaz de fazer com a minha compaixão.

— Não sei se consigo — murmurei.

Ele bateu com o punho na mesa. — Não consegues ou não queres? Sempre foste ingrata! Dei-te tudo! — A velha ladainha.

Tudo? Dei por mim a rir-me por dentro. Deu-me teto e comida, sim. Mas nunca me deu colo. Nunca me disse que estava orgulhoso de mim quando entrei na faculdade. Nunca me abraçou quando falhei. Cresci a acreditar que amor era sinónimo de medo.

A notícia da insuficiência renal do meu pai chegou numa tarde chuvosa de novembro. O hospital de Santa Maria ligou-me: “O seu pai precisa de um transplante urgente.” Fui visitá-lo no hospital, o cheiro a desinfetante misturado com o suor do medo. Ele parecia pequeno na cama, mas bastou um olhar para eu voltar a ser a menina assustada de oito anos.

A família reuniu-se em casa da minha tia Lurdes para discutir o assunto. O meu primo Rui sugeriu logo: — Mariana é compatível, não é? — como se fosse óbvio que eu devia sacrificar-me.

A minha tia Lurdes olhou-me com aquele ar de quem nunca gostou verdadeiramente de mim: — É o mínimo que podes fazer pelo teu pai. Ele sempre trabalhou tanto por ti.

A minha prima Joana, mais nova e rebelde, foi a única a pôr-se do meu lado: — Ninguém pode obrigar a Mariana a nada! — Mas foi silenciada por olhares reprovadores.

Nessa noite não dormi. Senti-me esmagada pelo peso da expectativa familiar e pela culpa. Recordei as vezes em que desejei fugir de casa, as noites em que me escondia no quarto para não ouvir os gritos dele à minha mãe. Lembrei-me do dia em que ele partiu o meu diário porque achou que eu estava a escrever mentiras sobre ele.

No dia seguinte, fui trabalhar como se nada fosse. Sou professora primária numa escola pública em Marvila. Os meus alunos são a minha luz. Quando cheguei à sala, a pequena Inês abraçou-me sem motivo aparente. Chorei no recreio, escondida atrás do pavilhão.

O tempo passava e as pressões aumentavam. O meu pai ligava-me todos os dias: ora suplicava, ora ameaçava cortar relações comigo para sempre. Os meus tios diziam-me que eu ia arrepender-me se ele morresse sem o ajudar. Até colegas da escola começaram a comentar: “Coitada da Mariana…”, como se eu fosse um monstro egoísta.

Uma noite, recebi uma mensagem da Joana: “Não te deixes destruir por eles. Tens direito à tua vida.” Senti-me menos sozinha.

Fui falar com uma psicóloga do centro de saúde. Contei-lhe tudo: os abusos emocionais, os anos de medo, a culpa insuportável. Ela perguntou-me: — Mariana, alguma vez pensou que talvez não tenha obrigação de salvar quem nunca soube cuidar de si?

Essa pergunta ficou a ecoar na minha cabeça durante dias.

O meu pai piorava. Os médicos disseram que sem transplante teria poucos meses de vida. Fui visitá-lo ao hospital mais uma vez. Ele estava fraco, mas quando me viu, tentou sentar-se na cama:

— Mariana… filha… — Pela primeira vez ouvi ternura na voz dele. — Desculpa se fui duro contigo… Não sabia fazer melhor.

Senti as lágrimas caírem sem controlo. Quis acreditar naquele pedido de desculpa, mas era tarde demais? Ou será que nunca é tarde?

— Pai… eu preciso pensar em mim desta vez — disse-lhe baixinho.

Ele virou o rosto para a janela e não disse mais nada.

Nos dias seguintes vivi num limbo entre o alívio e o remorso. A família afastou-se ainda mais de mim; alguns amigos também não compreenderam a minha decisão. Senti-me órfã antes mesmo de perder o meu pai.

O tempo passou devagar até ao telefonema fatídico: “O seu pai faleceu esta manhã.” Fui ao funeral sozinha. Ninguém falou comigo. Olhei para o caixão e perguntei-me se algum dia teria paz com esta escolha.

Hoje escrevo esta história sentada no banco do Jardim da Estrela, vendo crianças brincarem com os pais. Pergunto-me se algum dia saberei ser mãe sem repetir os erros do meu pai. Será que fiz bem? Onde acaba o dever de filha e começa o direito à felicidade?

E vocês? Já tiveram de escolher entre perdoar e proteger-se? Até onde iriam por alguém que vos magoou?