Quando a Casa Deixa de Ser Abrigo: A Minha Fuga Noturna com os Meus Filhos e a Amarga Lição de Confiança

— Mãe, para onde vamos? — perguntou a Leonor, com a voz trémula, enquanto eu apertava a mão dela e empurrava o carrinho do Tiago pela rua deserta. O relógio da igreja marcava quase três da manhã. O silêncio era cortante, só interrompido pelo som apressado dos nossos passos e pelo choro contido do meu filho mais novo.

O meu coração batia tão forte que parecia querer saltar-me do peito. Ainda sentia o cheiro do whisky no hálito do Rui, o meu marido, e o eco das palavras dele a martelar-me a cabeça: “És inútil! Não sabes fazer nada direito!” Quando o prato voou contra a parede e se partiu em mil pedaços, percebi que não podia ficar mais. Não podia arriscar que aquela raiva se voltasse contra os meus filhos. Peguei neles, enfiei umas mudas de roupa numa mochila e saímos pela porta das traseiras, sem olhar para trás.

Caminhámos durante quase meia hora até à casa da minha mãe. A cada passo, sentia o peso da vergonha e do medo. O que iria ela dizer? Sempre me avisou para não casar com o Rui. “Ele tem um feitio difícil”, dizia ela. Mas eu nunca quis ouvir. Agora, ali estava eu, descalça, com os filhos ao colo da noite, a pedir ajuda.

Bati à porta com força, tentando não chorar. Ouvi passos arrastados do outro lado. A porta abriu-se uma fresta e vi o rosto cansado da minha mãe.

— O que é que se passa? — perguntou ela, sem esconder o incómodo.

— Preciso de ficar aqui esta noite… Por favor, mãe — supliquei, tentando controlar a voz.

Ela olhou para mim de cima a baixo, depois para as crianças. Suspirou fundo.

— Não posso meter-me nesses teus problemas outra vez, Ana. O teu pai não quer confusões cá em casa. Vai-te embora antes que ele acorde.

Senti o chão fugir-me dos pés. — Mãe… por favor… — mas ela já tinha fechado a porta.

Fiquei ali parada uns segundos, sem saber o que fazer. Leonor começou a chorar baixinho. Abracei-a com força.

— Vai correr tudo bem, filha… — menti.

A próxima opção era a casa da minha irmã, Mariana. Sempre fomos próximas em miúdas, mas desde que ela casou com o Paulo e foi viver para um apartamento novo, as coisas mudaram. Ainda assim, era a única esperança.

Andámos mais vinte minutos até ao prédio dela. Toquei à campainha várias vezes até ouvir a voz dela pelo intercomunicador:

— Quem é?

— Sou eu, Ana… Preciso mesmo de falar contigo…

Houve um silêncio longo. Finalmente, ouvi um clique e a porta abriu-se. Subimos as escadas devagarinho. Mariana apareceu à porta de pijama, com ar sonolento.

— O que é que aconteceu?

— O Rui… — comecei, mas as palavras ficaram-me presas na garganta. — Preciso de um sítio para ficar esta noite.

Ela olhou para mim e depois para as crianças. — O Paulo não vai gostar nada disto… Sabes como ele é com barulho e confusão…

— Mariana, por favor…

Ela hesitou, mas acabou por nos deixar entrar. Sentámo-nos na sala escura. Tiago adormeceu no sofá, exausto. Leonor encostou-se a mim em silêncio.

Mariana trouxe-me um copo de água e sentou-se à minha frente.

— Ana… tu sabes que tens de resolver isto sozinha, não sabes? Não podes estar sempre a fugir e a vir para aqui cada vez que as coisas correm mal…

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. — Achas que isto é fácil? Achas mesmo que eu queria estar aqui às três da manhã com os meus filhos?

Ela desviou o olhar. — Eu só não quero problemas cá em casa…

O Paulo apareceu à porta do quarto, esfregando os olhos.

— O que é isto? — perguntou ele, irritado.

Mariana levantou-se logo para lhe explicar em voz baixa. Ouvi apenas fragmentos: “só esta noite”, “não se vai repetir”, “amanhã de manhã vão-se embora”.

Senti-me um fardo. Uma vergonha. Como é possível sentir-me tão sozinha rodeada de família?

Na manhã seguinte, acordei com o som das vozes baixas na cozinha. Mariana preparava café enquanto Paulo resmungava sobre ter de sair mais cedo por causa de nós.

— Ana, tens de ir embora antes das oito — disse Mariana sem me olhar nos olhos.

Arrumei as coisas em silêncio e acordei as crianças. Saímos sem dizer adeus.

Não sabia para onde ir. Liguei para a minha amiga Sónia, mas ela estava fora em trabalho. Tentei ligar para o centro social da paróquia, mas só abriam às dez.

Sentámo-nos num banco do jardim à espera que o tempo passasse. Leonor encostou-se ao meu ombro.

— Mãe… vamos voltar para casa?

O medo apertou-me o peito. Não podia voltar. Não depois daquela noite.

Quando finalmente consegui falar com a assistente social, ela disse-me que havia uma vaga num abrigo temporário noutra cidade. Tive de explicar tudo: as discussões constantes, os insultos, o medo de que algo pior acontecesse aos meus filhos.

— Fez bem em sair — disse ela com voz calma. — Agora precisa de pensar em si e nas crianças.

Fomos levados para um abrigo discreto nos arredores de Setúbal. O edifício era velho mas limpo; as outras mulheres olhavam-nos com compaixão silenciosa. Ali ninguém fazia perguntas desnecessárias; todas sabiam demasiado bem como era chegar ali sem nada além do medo e da esperança ténue de recomeçar.

As noites eram longas e cheias de insónia. Leonor chorava baixinho na cama ao lado da minha; Tiago acordava sobressaltado com qualquer barulho mais forte.

Passaram-se semanas até conseguir arranjar um emprego como empregada de limpeza numa escola primária local. Não era o trabalho dos meus sonhos, mas era um começo.

A família continuava distante. A minha mãe ligou-me uma vez só para perguntar se precisava de alguma coisa para os miúdos; recusei por orgulho ferido. Mariana mandava mensagens ocasionais: “Espero que estejas melhor.” Nunca mais falou em visitas ou convites.

O Rui tentou contactar-me várias vezes; ameaçou levar as crianças se não voltasse para casa. Tive medo durante meses sempre que via um carro igual ao dele na rua ou ouvia passos atrás de mim à noite.

Mas aos poucos fui ganhando força outra vez. Fiz novas amigas no abrigo; partilhávamos histórias parecidas e ajudávamo-nos umas às outras como podíamos.

Um dia, enquanto limpava uma sala cheia de desenhos infantis na escola onde trabalhava, dei por mim a chorar baixinho — não de tristeza, mas de alívio por finalmente estar longe daquele inferno doméstico.

Aos poucos fui reconstruindo a minha vida: arranjei uma casa pequena mas acolhedora; Leonor voltou a sorrir; Tiago começou a dormir noites inteiras sem pesadelos.

Ainda hoje me pergunto porque é que aqueles que mais amamos são muitas vezes os primeiros a virar-nos as costas quando mais precisamos deles. Será que algum dia vou conseguir perdoar-lhes? Ou será que há feridas que nunca saram completamente?