Entre Silêncios e Segredos: Um Passeio que Mudou Tudo
— Não vais mesmo vir jantar hoje? — perguntei, tentando esconder a frustração na voz enquanto olhava para a porta do quarto, onde a Leonor se preparava para mais uma aula de cerâmica.
Ela nem sequer me olhou. — Já te disse, Miguel. As aulas são só às quartas. Preciso disto para mim.
Fiquei ali parado, com as chaves na mão e o casaco meio vestido, a sentir o peso de mais uma noite sozinho. O silêncio da casa parecia maior desde que a Leonor descobriu esta nova paixão. Antes, jantávamos juntos quase todos os dias, mesmo que fosse só sopa e pão. Agora, era eu e a televisão, ou eu e o vazio.
No trabalho, as coisas não eram muito diferentes. O escritório da consultora onde sou analista de dados é um mar de secretárias brancas e conversas sussurradas. A maior parte dos meus colegas são mulheres — simpáticas, mas distantes. A rotina é sempre igual: café às nove, reuniões intermináveis, almoço rápido no refeitório, mais reuniões, mais café. Os meus amigos de infância estão todos ocupados com filhos ou emigraram. Sinto-me cada vez mais isolado, como se estivesse a ver a minha vida de fora.
Foi nesse contexto que apareceu a Vitória. Nova na equipa, cabelo castanho apanhado num rabo-de-cavalo desleixado, sorriso fácil mas olhar atento. No primeiro dia dela, reparei que ficou sentada sozinha no almoço. No segundo dia, já estava a rir-se com a Andreia e a Marta. No terceiro dia, veio ter comigo à máquina do café.
— Miguel, queres vir dar uma volta depois do trabalho? Preciso de esticar as pernas e ainda não conheço bem esta zona — disse ela, com uma naturalidade desconcertante.
Hesitei. Não era costume meu aceitar convites assim, ainda por cima de alguém que mal conhecia. Mas naquele dia, talvez por me sentir particularmente invisível, acabei por dizer que sim.
Saímos do escritório já com o céu a escurecer. O vento de Lisboa em maio é traiçoeiro: ora quente, ora frio. Caminhámos em silêncio durante uns minutos pela Avenida da Liberdade.
— Costumas fazer isto? — perguntei, só para quebrar o gelo.
Ela sorriu. — Caminhar? Sempre que posso. Ajuda-me a pensar. E tu?
Encolhi os ombros. — Normalmente vou direto para casa. A Leonor tem andado ocupada…
— A tua mulher?
Assenti. Não sabia bem porque estava a partilhar aquilo com ela.
— Às vezes parece que vivemos em casas diferentes — confessei.
Vitória olhou-me de lado, como quem avalia se deve ir mais fundo ou não.
— Sabes que não és o único — disse ela, baixinho. — O meu namorado está sempre em viagens de trabalho. Às vezes dou por mim a falar sozinha em casa.
Rimo-nos os dois, mas havia ali uma tristeza partilhada.
Paramos num banco do Parque Eduardo VII. O trânsito fazia-se ouvir ao longe, misturado com o chilrear dos pássaros e o som abafado das nossas respirações.
— Sinto falta de ter alguém que me ouça — disse eu, surpreendendo-me com a sinceridade da minha voz.
Ela não respondeu logo. Ficou a olhar para as mãos.
— Sabes o que é estranho? — começou ela. — Quando era miúda achava que os adultos tinham tudo controlado. Agora vejo que andamos todos perdidos…
Ficámos ali sentados durante muito tempo. Falámos dos nossos medos: o medo de envelhecer sozinho, o medo de não ser suficiente, o medo de acordar um dia e perceber que desperdiçámos anos atrás de uma rotina confortável mas vazia.
Quando dei por mim já era quase noite fechada.
— Queres jantar? — perguntei-lhe, sem pensar.
Ela hesitou um segundo antes de aceitar.
Fomos a uma tasca pequena perto do Marquês. Pedimos bacalhau à Brás e vinho da casa. Entre garfadas e sorrisos tímidos, fui-me apercebendo de detalhes sobre ela: tinha vindo do Porto há pouco tempo, adorava livros policiais e tinha medo de elevadores.
No final da noite, quando nos despedimos à porta do metro, senti algo estranho: uma leveza há muito desaparecida.
Cheguei a casa tarde. A Leonor já dormia. Fiquei parado à porta do quarto a ouvi-la respirar. Senti culpa — por ter gostado tanto daquela noite com outra pessoa; por ter sentido que alguém me via realmente.
No dia seguinte no trabalho, tudo parecia igual mas diferente ao mesmo tempo. A Andreia lançou-me um olhar curioso quando entrei na copa com a Vitória.
— Então vocês ontem foram dar uma volta? — perguntou ela, com um sorriso maroto.
Senti-me corar como um adolescente apanhado em flagrante.
— Só fomos conversar — respondi rapidamente.
Mas percebi logo que os rumores iam começar.
Ao longo das semanas seguintes, eu e a Vitória tornámo-nos inseparáveis no trabalho. Almoçávamos juntos quase todos os dias; trocávamos mensagens à noite sobre séries e livros; partilhávamos silêncios confortáveis e confidências inesperadas.
A Leonor começou a reparar na minha ausência emocional. Uma noite, enquanto jantávamos em silêncio, ela pousou os talheres e olhou-me nos olhos:
— Miguel… ainda gostas de mim?
A pergunta caiu como uma pedra no meio da sala.
— Claro que sim… Porquê essa pergunta?
Ela suspirou fundo.
— Sinto-te distante há meses. Sei que tenho estado ausente também… Mas não quero perder-te.
Fiquei sem palavras. Quis dizer-lhe tudo: sobre a solidão, sobre a Vitória, sobre o medo de estarmos juntos só por hábito. Mas calei-me.
Nessa noite dormimos costas voltadas.
No trabalho, as coisas começaram a azedar. A Marta deixou de falar comigo; ouvi comentários sussurrados quando passava; até o chefe me chamou ao gabinete para perguntar se havia algum problema na equipa.
— Miguel, tens andado distraído ultimamente… Está tudo bem?
Assenti mecanicamente. Mas dentro de mim sentia tudo menos paz.
Uma sexta-feira à tarde, recebi uma mensagem da Vitória:
“Preciso de falar contigo.”
Encontrámo-nos no jardim do Campo Pequeno. Ela estava nervosa; nunca a tinha visto assim.
— Miguel… acho que isto está a ir longe demais — disse ela sem rodeios. — Gosto muito de ti como amigo… mas não quero ser motivo para problemas no teu casamento.
O mundo pareceu abrandar à minha volta.
— Não és tu… Sou eu que estou perdido — respondi baixinho.
Ela apertou-me a mão com força antes de se levantar e ir embora.
Fiquei ali sentado muito tempo depois dela partir. Pensei na Leonor; pensei nos meus colegas; pensei em mim próprio há uns meses atrás — tão certo de tudo e afinal tão vazio por dentro.
Nessa noite cheguei cedo a casa. Encontrei a Leonor na sala, rodeada dos seus vasos tortos mas felizes.
— Podemos conversar? — perguntei-lhe finalmente.
Falámos durante horas: sobre sonhos adiados, sobre rotinas sufocantes, sobre o medo de recomeçar ou desistir. Chorámos os dois; rimos dos nossos próprios dramas; prometemos tentar outra vez — mas desta vez com verdade.
Hoje olho para trás e percebo como um simples passeio pode abrir portas dentro de nós que julgávamos trancadas para sempre. E pergunto-me: quantas vidas se perdem por medo de sair da rotina? Quantos segredos guardamos até ser tarde demais?