Nunca Mais Verás os Teus Netos: Uma Chamada Que Mudou Tudo
— Não vais voltar a ver os teus netos, Maria. Nunca mais. — A voz da Ana, a minha nora, soou fria, quase irreconhecível do outro lado da linha. Fiquei sem ar, o telefone a tremer-me na mão, o coração a bater tão forte que pensei que ia desmaiar ali mesmo, na cozinha, entre o cheiro do café acabado de fazer e o relógio que marcava as oito da manhã de uma terça-feira qualquer.
Como é que chegámos aqui? Como é que uma família se parte assim, de um momento para o outro? Ainda ontem estava a dar o pequeno-almoço ao Tiaguinho e à Matilde, a rir-me das suas traquinices, a prometer-lhes que íamos ao parque depois da escola. E agora… agora só me restava o eco daquela frase cruel.
— Ana, por favor… — tentei dizer, mas ela já tinha desligado. Fiquei ali parada, com o telefone colado ao ouvido, como se ainda pudesse ouvir a respiração dela, como se pudesse voltar atrás no tempo e impedir tudo isto.
O António, o meu filho, não me atendia. Liguei-lhe três vezes, quatro, cinco. Nada. O silêncio era ensurdecedor. Sentei-me à mesa da cozinha, as mãos a tremerem tanto que deixei cair a chávena de café. O barulho da porcelana a partir-se no chão foi como um estalo na cara: era real. Era mesmo real.
Os dias seguintes foram um nevoeiro. Ia trabalhar para a escola primária onde era auxiliar, mas não conseguia concentrar-me nos meninos. Via o Tiaguinho em cada criança de cabelo despenteado, ouvia a gargalhada da Matilde sempre que alguém corria pelo corredor. À noite, sentava-me no sofá com as fotografias deles espalhadas à minha volta, como se assim pudesse trazê-los de volta.
A minha irmã, Lurdes, tentava animar-me:
— Maria, não podes deixar que ela te trate assim! Tens de falar com o António.
— Ele não me atende, Lurdes! Não sei o que se passa…
— Achas que fizeste alguma coisa?
Essa pergunta ficou a martelar-me na cabeça. O que é que eu tinha feito? Tinha sido dura com a Ana algumas vezes, sim. Nunca achei que ela fosse boa o suficiente para o meu filho — mas qual mãe acha? Sempre quis proteger o António, sempre quis o melhor para ele e para os meus netos. Talvez tenha dito coisas de que me arrependo…
Lembrei-me daquela noite em que discutimos por causa da educação das crianças. A Ana queria pô-los numa escola privada em Lisboa; eu disse-lhe que era um disparate, que as escolas públicas eram tão boas ou melhores. Ela ficou ofendida, disse que eu não respeitava as decisões dela como mãe. O António ficou calado — como sempre — e eu saí porta fora antes de dizer mais alguma coisa de que me arrependesse.
Será que foi aí que tudo começou a ruir?
Os meses passaram devagar. No Natal, preparei os presentes dos netos como sempre: um carrinho para o Tiaguinho, uma boneca para a Matilde. Esperei horas pela chamada do António ou da Ana. Nada. No dia 25 fui à missa sozinha e chorei baixinho no banco de trás da igreja.
No trabalho começaram a notar que eu estava diferente. A diretora chamou-me ao gabinete:
— Maria, está tudo bem? Tem andado tão calada…
— São coisas de família… — respondi, sem conseguir conter as lágrimas.
A solidão tornou-se uma sombra constante. Os vizinhos começaram a perguntar pelos meninos:
— Então e os seus netos? Já não os vemos cá há tanto tempo!
Eu sorria e inventava desculpas: estavam doentes, tinham ido passar uns dias ao Algarve… Mas por dentro sentia-me cada vez mais vazia.
Um dia, ao sair do supermercado, encontrei a Ana na rua com as crianças. O Tiaguinho correu para mim:
— Avó! Avó!
Mas a Ana puxou-o pelo braço:
— Não fales com ela! Anda já!
Fiquei ali parada, sem saber o que fazer. As pessoas olhavam para mim com pena — ou talvez fosse só imaginação minha.
Nessa noite não dormi. Revivi cada discussão, cada palavra amarga trocada com a Ana. Lembrei-me do António em pequeno, dos serões passados à lareira na casa dos meus pais em Santarém. Tínhamos tão pouco e éramos tão felizes… Como é que tudo se perdeu?
Decidi escrever uma carta à Ana. Não sabia se ela ia ler, mas precisava de tentar:
“Querida Ana,
Sei que errei muitas vezes. Sei que fui dura contigo e talvez injusta. Só queria proteger o meu filho e os meus netos — mas percebo agora que te magoei. Peço-te desculpa por tudo o que disse e fiz. Sinto muito a falta do Tiago e da Matilde. Eles são parte de mim também. Por favor, deixa-me vê-los nem que seja só uma vez por mês.
Com carinho,
Maria”
Esperei semanas por resposta. Nada.
A Lurdes insistia:
— Vai lá bater-lhes à porta! Faz-te ouvir!
Mas eu tinha medo de piorar ainda mais as coisas.
Um dia recebi uma mensagem do António:
“Mãe, precisamos de falar.”
O coração quase me saltou do peito.
Encontrámo-nos num café discreto perto do trabalho dele. O António estava magro, olheiras fundas.
— Mãe… isto está difícil lá em casa.
— Eu só quero ver os meus netos…
Ele baixou os olhos:
— A Ana está magoada contigo. Diz que não respeitas as nossas decisões.
— Eu sei… já lhe pedi desculpa.
— Ela não está pronta para perdoar.
— E tu? Vais deixar que ela me afaste dos meus netos?
Ele ficou em silêncio muito tempo.
— Mãe… eu amo-te. Mas também amo a Ana e os meus filhos. Estou no meio disto tudo…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim:
— Então vais escolher? Vais mesmo deixar que ela me apague da vida deles?
Ele abanou a cabeça:
— Não é isso… Só preciso de tempo para resolver as coisas.
Saí dali pior do que entrei. Pela primeira vez senti raiva do meu próprio filho — aquele menino loiro de olhos grandes que eu embalei tantas noites quando tinha febre.
Os meses passaram e nada mudou. A carta ficou sem resposta; as mensagens do António tornaram-se cada vez mais raras. A casa parecia cada vez maior e mais fria sem as vozes dos netos.
Comecei a ir ao psicólogo do centro de saúde — foi a Lurdes quem insistiu:
— Maria, tu não podes carregar isto sozinha.
A doutora Teresa ouviu-me durante meses:
— Maria, às vezes precisamos de aceitar aquilo que não podemos mudar…
Mas como aceitar perder os netos? Como aceitar ser esquecida por quem mais amamos?
Um dia recebi uma fotografia pelo WhatsApp: era o Tiaguinho com um dente a abanar e a Matilde vestida de fada no Carnaval da escola nova. O António escreveu apenas: “Eles estão bem”.
Chorei tanto nessa noite que pensei nunca mais ter lágrimas para chorar.
A vida foi seguindo — ou fingindo seguir. Voltei a sorrir aos poucos no trabalho; comecei a fazer voluntariado na paróquia para ocupar os fins-de-semana vazios; aprendi a cozinhar só para mim.
Mas todos os dias olhava para o telemóvel à espera de uma mensagem da Ana ou do António; todos os dias sonhava com um reencontro improvável à porta da escola ou num aniversário esquecido.
Às vezes penso se devia ter lutado mais — ou se devia ter ficado calada quando achava que tinha razão. Penso nas palavras duras ditas em momentos de raiva; nas oportunidades perdidas de abraçar em vez de discutir; no orgulho estúpido que tantas vezes nos separa daqueles que mais amamos.
Hoje escrevo esta história porque sei que não sou a única: quantas Marias há espalhadas por Portugal inteiro? Quantas avós choram em silêncio pelos netos afastados por zangas familiares? Será possível perdoar — e ser perdoada — depois de tanta mágoa?
Se pudesse voltar atrás faria tudo diferente? Não sei… Mas sei que continuo à espera daquele telefonema: “Mãe… podes vir buscar os meninos hoje?” Será pedir demais?
E vocês? Já perderam alguém por orgulho ou palavras mal ditas? O que fariam no meu lugar?