Uma Só Palavra do Meu Marido Destruiu o Meu Mundo: Entre o Desespero e a Esperança
— Não sei se te amo mais, Leonor.
As palavras ecoaram na sala como um trovão inesperado. O relógio da parede marcava dez e meia da noite, mas o tempo pareceu congelar. O Rui estava sentado no sofá, as mãos entrelaçadas, o olhar perdido no chão. Eu, de pé à sua frente, sentia o chão fugir-me dos pés. Como assim? Depois de vinte anos juntos, dois filhos, uma vida inteira partilhada… Como é possível que tudo se resuma a esta frase?
— O que disseste? — perguntei, a voz trémula, quase num sussurro.
Ele levantou os olhos, vermelhos de cansaço ou de culpa, não sei. — Desculpa, Leonor. Não queria magoar-te. Mas não posso continuar a fingir.
A minha cabeça girava. Lembrei-me do jantar que acabara de preparar — bacalhau à Brás, o prato favorito dele — e das conversas banais sobre o trabalho e as notas do Diogo e da Matilde. Tudo parecia tão normal há meia hora. Agora, era como se estivesse a ver a minha vida de fora, como se fosse uma peça de teatro mal encenada.
— Há outra pessoa? — perguntei, sentindo o coração apertar.
Ele hesitou. O silêncio dele foi resposta suficiente.
Sentei-me na cadeira da sala de jantar, incapaz de conter as lágrimas. O Rui aproximou-se, mas recuei instintivamente. — Não me toques — disse-lhe, quase num grito abafado.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na cama, a olhar para o teto, a tentar perceber em que momento tudo começou a desmoronar-se. Terá sido quando comecei a trabalhar mais horas para pagar as contas? Ou quando ele começou a chegar mais tarde a casa? Ou talvez quando deixámos de conversar sobre sonhos e passámos só a falar sobre problemas?
No dia seguinte, tentei manter a rotina. Preparei os pequenos-almoços dos miúdos, levei-os à escola. A Matilde percebeu logo que algo não estava bem.
— Mãe, estás triste? — perguntou-me ela, com aqueles olhos grandes e atentos.
Sorri-lhe como pude. — Estou só cansada, filha.
O Rui saiu cedo para o trabalho. Ou pelo menos foi isso que disse. Não consegui olhar para ele sem sentir raiva e tristeza misturadas. Liguei à minha irmã, Sofia.
— Preciso de falar contigo — disse-lhe, a voz embargada.
Ela veio ter comigo ao café da esquina. Quando lhe contei tudo, ela ficou em silêncio durante uns segundos.
— Sempre achei que o Rui era um bom homem… — murmurou ela.
— Eu também — respondi, sentindo-me ainda mais sozinha.
Os dias seguintes foram um tormento. O Rui dormia no sofá. Os miúdos começaram a perguntar porque é que o pai já não lhes dava beijos de boa noite. A minha mãe ligava todos os dias, desconfiada do meu tom de voz.
— Leonor, está tudo bem? — insistia ela.
— Está tudo bem, mãe — mentia eu.
Mas nada estava bem. No trabalho, não conseguia concentrar-me. A chefe chamou-me ao gabinete.
— Leonor, tens andado distraída. Precisas de uns dias?
Queria gritar que precisava de uma vida nova. Mas limitei-me a acenar com a cabeça e pedir desculpa.
Uma noite, depois de pôr os miúdos na cama, sentei-me com o Rui na sala.
— Vais deixar-nos? — perguntei-lhe.
Ele olhou para mim com lágrimas nos olhos. — Não sei o que fazer. Não quero magoar-vos mais…
— Já magoaste — interrompi-o. — Agora tens de decidir se vais tentar consertar isto ou se vais embora.
Ele ficou calado. O silêncio dele era um punhal no meu peito.
A Sofia insistia para eu ir passar uns dias com ela ao Porto. Mas como podia abandonar os meus filhos naquele caos? A minha mãe começou a aparecer em minha casa sem avisar, trazendo tupperwares com comida e conselhos que eu não queria ouvir.
— Tens de ser forte pelos teus filhos — dizia ela.
Mas eu sentia-me tão fraca…
Certa noite ouvi vozes baixas vindas do corredor. Era o Diogo e a Matilde a discutir.
— A culpa é tua! — gritava ela ao irmão. — Se não tivesses contado à avó que o pai dorme no sofá…
— Cala-te! Tu é que andas sempre a chorar! — respondeu ele.
Entrei no quarto deles e abracei-os aos dois. — Nada disto é culpa vossa — disse-lhes entre lágrimas. — O pai e a mãe estão só… confusos.
A Matilde soluçava no meu colo. O Diogo olhava para mim com raiva contida.
— Porque é que o pai já não gosta de ti? — perguntou ele.
Como explicar-lhe que às vezes as pessoas mudam? Que o amor pode morrer mesmo quando fazemos tudo certo?
Os meses passaram devagar. O Rui acabou por sair de casa numa manhã chuvosa de março. Levou uma mala pequena e deixou um bilhete na mesa da cozinha: “Desculpa por tudo”.
Fiquei sozinha com os miúdos e um vazio imenso dentro de mim. A casa parecia maior e mais fria sem ele. Os jantares eram silenciosos; as manhãs apressadas e tristes.
A minha mãe começou a falar em divórcio como quem fala do tempo: inevitável e fora do nosso controlo.
— Não podes ficar assim para sempre, Leonor — dizia ela enquanto lavava a loiça na minha cozinha. — Tens de seguir em frente.
Mas como seguir em frente quando tudo me lembrava dele? O cheiro da roupa dele ainda pairava no armário; as fotografias das férias em Lagos sorriam-me das molduras; até o cão parecia esperar por ele à porta todas as noites.
Um dia encontrei uma mensagem no telemóvel do Rui enquanto arrumava umas caixas antigas: “Sinto tanto a tua falta… Amo-te”. Era da tal outra mulher: Marta, colega dele do escritório em Lisboa. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Liguei-lhe sem pensar duas vezes.
— És tu a Marta? — perguntei assim que ela atendeu.
Do outro lado ouvi um suspiro nervoso. — Sim…
— Espero que saibas o que estás a fazer — disse-lhe antes de desligar.
Chorei durante horas depois disso. Senti-me ridícula por ter ligado; humilhada por ter sido trocada; furiosa por ter perdido tanto tempo da minha vida com alguém que afinal não me conhecia nem me merecia.
A Sofia veio passar um fim-de-semana comigo e obrigou-me a sair de casa.
— Vais vestir-te e vamos jantar fora! — ordenou ela.
No restaurante senti-me deslocada entre casais felizes e grupos de amigos barulhentos. Mas pela primeira vez em meses ri-me de verdade quando ela contou histórias disparatadas do nosso tempo na faculdade.
— Vais ver que ainda vais ser feliz outra vez — disse-me ela ao despedir-se.
Quis acreditar nela. Comecei a fazer caminhadas ao fim da tarde; inscrevi-me num curso de fotografia; voltei a pintar como fazia antes dos filhos nascerem. Aos poucos fui recuperando pedaços de mim mesma que julgava perdidos para sempre.
O Diogo começou a trazer amigos para casa; a Matilde pediu para dormir na cama comigo nas noites em que tinha pesadelos. Aprendi a ser mãe e pai ao mesmo tempo; aprendi a pedir ajuda quando precisava; aprendi que não há vergonha em chorar nem em recomeçar do zero.
Um ano depois do Rui ter saído, recebi uma carta dele:
“Leonor,
Sei que não mereço o teu perdão. Fiz escolhas erradas e destruí aquilo que mais amava nesta vida: tu e os nossos filhos. Espero que um dia consigas ser feliz sem mim.
Com arrependimento,
Rui”
Li aquelas palavras vezes sem conta até as lágrimas secarem no meu rosto. Não respondi à carta; não precisava mais das desculpas dele para seguir em frente.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que chorava todas as noites à espera de respostas. Ainda dói? Dói sempre um pouco. Mas aprendi que sou mais forte do que pensava; que consigo amar-me mesmo quando outros deixam de me amar; que há vida depois do fim.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas ao medo de recomeçar? Quantas acreditam que não merecem ser felizes sozinhas? Talvez partilhar esta história ajude alguém a perceber que nunca é tarde para nos reencontrarmos.