A Mensagem Que Mudou Tudo: O Dia em Que Miguel Partiu

— Não me mintas, Miguel. Eu vi a mensagem. — A minha voz tremia, mas os meus olhos não desviavam dos dele. O silêncio entre nós era tão denso que quase me sufocava. O cheiro do café frio na mesa misturava-se ao perfume dele, aquele aroma familiar que, de repente, me parecia estranho.

Miguel olhou para mim, os olhos castanhos fugidios, as mãos inquietas a brincar com a chávena. — Não é o que pensas, Sofia. — Disse baixo, quase num sussurro, como se tivesse medo que as paredes ouvissem.

Mas eu já sabia. Sabia desde o momento em que vi aquela notificação no telemóvel dele: “Saudades tuas. Quando voltas?” O nome era de uma mulher que eu não conhecia. O coração apertou-se-me no peito, como se alguém o tivesse fechado numa mão fria.

Lembro-me de tudo com uma nitidez cruel: o som da chuva a bater nos vidros da nossa casa em Braga, o relógio da cozinha a marcar as horas como se zombasse de mim, e a minha filha Inês a brincar na sala, alheia ao abismo que se abria debaixo dos nossos pés.

— Diz-me a verdade, Miguel. Por favor. — Senti as lágrimas a quererem cair, mas forcei-me a manter-me firme. Tinha de saber até onde ia a mentira.

Ele passou as mãos pelo rosto, exausto. — Sofia… Eu… Não queria magoar-te. Foi só uma conversa. Nada aconteceu.

— Conversa? Conversa sobre quê? Sobre saudades? Sobre voltar? — A minha voz subiu de tom, e ouvi Inês parar de brincar. Senti-me péssima por ela ouvir aquilo, mas já não conseguia controlar o desespero.

Miguel levantou-se abruptamente, a cadeira arrastando-se no chão de madeira. — Não posso falar disto agora! — E saiu pela porta, deixando-me sozinha com o eco das suas palavras e o som abafado do choro da nossa filha.

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na cama, abraçada à almofada dele, tentando encontrar nele algum cheiro de mentira, alguma pista que me dissesse há quanto tempo aquilo durava. O telemóvel dele ficou esquecido na cozinha. Tentei resistir à tentação, mas acabei por desbloqueá-lo.

As mensagens estavam lá: trocas diárias com uma tal de Rita. Palavras doces, promessas de encontros, confidências que eu já não ouvia há anos. Senti-me traída não só pelo conteúdo, mas pela intimidade partilhada com outra pessoa. Era como se ele tivesse dado a alguém o lugar que era meu.

No dia seguinte, Miguel não voltou para casa. Liguei-lhe dezenas de vezes; nenhuma resposta. A minha mãe veio buscar Inês para que eu pudesse pensar. Sentei-me na sala vazia e chorei tudo o que tinha para chorar.

Os dias seguintes foram um tormento. Os vizinhos começaram a perguntar por Miguel; a minha sogra ligava todos os dias, exigindo explicações que eu não tinha coragem de dar. O meu pai apareceu em casa com um saco de compras e um olhar preocupado:

— Sofia, tens de comer alguma coisa. Não podes deixar-te ir abaixo por causa dele.

— Pai… Eu não sei o que fazer. — Disse-lhe entre soluços.

Ele sentou-se ao meu lado e apertou-me a mão. — Lembra-te de quem és antes dele. És forte, filha. Sempre foste.

Mas eu sentia-me vazia. Cada canto da casa lembrava-me Miguel: as fotografias das férias nos Açores, os bilhetes do concerto dos Xutos & Pontapés colados no frigorífico, as cartas antigas guardadas numa caixa de sapatos.

Uma semana depois, Miguel apareceu finalmente em casa para buscar algumas roupas. Entrou sem olhar para mim, como um estranho.

— Vais mesmo embora? — Perguntei-lhe, a voz embargada.

Ele hesitou antes de responder:

— Preciso de tempo para pensar… Para perceber o que quero.

— E eu? E a Inês? — Senti raiva a crescer dentro de mim.

— Não sei, Sofia… Não sei mesmo.

Vi-o sair com uma mala pequena e uma expressão derrotada. Fiquei ali parada à porta até ele desaparecer na esquina da rua.

Os dias transformaram-se em semanas. A rotina tornou-se um refúgio doloroso: levar Inês à escola, trabalhar no escritório de advogados onde todos fingiam não saber do meu drama pessoal, voltar para casa e enfrentar o silêncio.

A minha mãe insistia para eu ir à missa ao domingo com ela:

— Deus ajuda quem não desiste de si próprio, filha.

Mas eu sentia-me incapaz de rezar por algo que já não acreditava ser possível: ter a minha família de volta.

Um dia recebi uma mensagem da Rita:

“Desculpa se causei dor à tua família. Nunca foi minha intenção.”

Fiquei furiosa. Como podia ela pedir desculpa por algo tão devastador? Respondi-lhe apenas:

“Espero que consigas viver com isso.”

O tempo foi passando e fui aprendendo a viver sem Miguel. Inês perguntava por ele todas as noites:

— A mamã está triste porque o papá foi embora?

Eu sorria-lhe e dizia:

— A mamã está só cansada, meu amor.

Mas ela sabia mais do que dizia; as crianças sentem tudo.

Um dia Miguel apareceu para ver Inês. Trouxe-lhe um livro novo e um sorriso triste.

— Podemos conversar? — Perguntou-me à porta.

Sentei-me com ele na sala onde tudo tinha começado.

— Sofia… Eu errei. Sei disso agora. Mas sinto-me perdido há muito tempo. Não foi só por causa da Rita… Foi porque nós deixámos de falar um com o outro.

— E achaste que fugir era solução? — Perguntei-lhe amargurada.

Ele baixou os olhos:

— Não sei o que fazer para te pedir perdão.

Ficámos ali sentados em silêncio durante minutos intermináveis. Depois levantei-me e disse-lhe:

— O perdão não apaga o passado, Miguel. Mas talvez possamos aprender alguma coisa com isto tudo…

Ele assentiu e saiu devagarinho, como se tivesse envelhecido anos naquele instante.

Hoje passaram seis meses desde aquele dia fatídico. A dor já não é tão aguda; transformou-se numa saudade amarga do que podia ter sido. Aprendi a viver sozinha com Inês e a encontrar pequenas alegrias nos gestos simples: um passeio no Jardim da Cordoaria ao domingo, um gelado depois da escola, uma gargalhada inesperada ao ver um filme antigo na televisão.

Às vezes pergunto-me se algum dia voltarei a confiar em alguém como confiei no Miguel. Se algum dia conseguirei olhar para trás sem sentir este aperto no peito.

E vocês? Já sentiram esta dor surda da traição? Como se volta a acreditar quando tudo à nossa volta parece desmoronar?