A Noiva que Não Convidou a Madrasta – Entre Ruínas e Reconstrução Familiar
— Como é possível, Mariana? Como é que não convidaste a Lurdes para o teu casamento? — O meu pai atirou a porta do quarto contra a parede, os olhos vermelhos de raiva e desilusão.
Senti o estômago apertar-se. O vestido de noiva ainda pendurado na porta do armário parecia zombar de mim. Eu queria gritar, mas só consegui sussurrar:
— Pai, não consegui… Não fazia sentido para mim.
Ele passou as mãos pelo cabelo grisalho, como fazia sempre que estava prestes a perder o controlo. — Não faz sentido para ti? E para mim? Para o teu irmão? Achas justo?
O silêncio caiu pesado. Oiço o tic-tac do relógio da sala, como se cada segundo fosse um lembrete de tudo o que nunca dissemos um ao outro. Desde pequena que tento agradar-lhe, ser a filha perfeita depois de a mãe ter ido embora. Mas nunca fui suficiente. Nem para ele, nem para Lurdes, nem para mim própria.
Lembro-me da primeira vez que vi Lurdes. Tinha oito anos e ainda acreditava que a mãe ia voltar. Lurdes entrou em casa com um sorriso forçado e um bolo de laranja nas mãos. O cheiro era bom, mas eu só queria que ela desaparecesse. O meu pai apresentou-a como “uma amiga especial”. No dia seguinte, ela já dormia lá em casa.
Os anos passaram e Lurdes tornou-se presença constante: nas festas de Natal, nas reuniões da escola, até nas consultas do médico. Sempre com aquele ar de quem tenta demasiado. Eu respondia com silêncio ou respostas curtas. O meu irmão mais novo, o Pedro, aceitou-a logo. Eu nunca consegui.
A minha mãe ligava de vez em quando, de França. As chamadas eram curtas e cheias de promessas vazias: “Para o ano vou aí”, “Quando tiver férias levo-te comigo”. Nunca aconteceu. Cresci entre dois mundos: o da ausência da minha mãe e o da presença forçada da Lurdes.
Agora, prestes a casar-me com o Miguel — o único homem que me fez sentir vista — só queria um dia sem máscaras nem obrigações. Mas o passado não me largava.
O meu pai continuava à minha frente, à espera de uma resposta. — Mariana, tu não tens noção do que estás a fazer à família! A Lurdes sempre te tratou como filha.
— Pai, ela nunca foi minha mãe! — explodi finalmente. — Nunca pedi que ela viesse para a nossa vida! Sempre fiz tudo para não te desiludir, mas isto… isto é o meu casamento!
Ele ficou calado. Vi nos olhos dele uma tristeza antiga, talvez culpa por nunca ter sabido lidar comigo depois do divórcio. Senti-me mal por magoá-lo, mas também cansada de carregar culpas que não eram minhas.
Naquela noite não dormi. O Miguel tentou acalmar-me:
— Amor, tens de fazer o que sentes certo para ti. Mas também percebo o teu pai…
— E eu? Quando é que alguém percebe o que eu sinto? — perguntei-lhe, já com lágrimas nos olhos.
No dia seguinte, recebi uma mensagem da Lurdes: “Sei que não me convidaste. Não te preocupes, Mariana. Desejo-te toda a felicidade do mundo.” Senti um aperto no peito. Era sincera? Ou era só mais uma tentativa de mostrar superioridade?
A minha avó materna ligou-me nesse dia:
— Filha, não deixes que os outros estraguem o teu dia. Mas lembra-te: família é quem está quando precisamos.
As palavras dela ecoaram em mim durante dias. O Pedro também me ligou:
— Mana, eu vou ao teu casamento porque és minha irmã. Mas gostava que a Lurdes também fosse… Ela gosta mesmo de ti.
Senti-me dividida entre todos: o pai magoado, o irmão desiludido, a madrasta resignada… e eu perdida no meio disto tudo.
Na véspera do casamento, fui à praia sozinha. Sentei-me na areia fria e olhei para as ondas. Pensei em tudo o que perdi e em tudo o que podia ganhar se tivesse coragem de perdoar — ou pelo menos de aceitar.
No dia do casamento, enquanto me vestia, olhei-me ao espelho e vi uma mulher cansada mas determinada. O meu pai entrou no quarto com os olhos inchados:
— Mariana… desculpa ter sido tão duro contigo. Só queria ver-te feliz.
Abracei-o com força.
— Pai… eu também quero ser feliz. Só não sei como fazer isso sem magoar alguém.
A cerimónia foi bonita mas sentida: lágrimas misturadas com sorrisos nervosos. Quando cheguei à festa, vi Lurdes ao fundo da sala. O Pedro tinha-lhe enviado um convite à última hora sem me dizer nada.
O coração disparou. Fui ter com ela.
— Lurdes…
Ela sorriu timidamente.
— Só vim porque o Pedro insistiu muito… Não quero estragar nada.
Olhei-a nos olhos pela primeira vez em muitos anos sem raiva nem defesa.
— Obrigada por teres vindo…
Ela tocou-me no braço:
— Mariana, nunca quis substituir ninguém. Só queria fazer parte da tua vida.
Chorei ali mesmo, no meio da festa. Pela primeira vez senti que talvez houvesse espaço para todos na minha história — até para as dores antigas.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos os nossos medos decidir por nós? E se tivéssemos coragem de abrir espaço para quem insiste em ficar?