Entre Silêncios e Tempestades: A Minha Vida em Fragmentos
— Não vais sair daqui, pois não? — A voz da minha mãe ecoava pela casa, trémula, quase um sussurro, mas carregada de uma raiva contida que me gelava o sangue. Eu estava sentado na escada, a ouvir tudo sem querer ser ouvido. O meu pai, com o casaco já vestido, hesitou à porta.
— Preciso de ar, Maria. Só isso. — O tom dele era cansado, como se cada palavra lhe custasse anos de vida.
— Precisas de ar ou precisas dela? — O silêncio que se seguiu foi mais pesado do que qualquer grito. Eu sabia exatamente de quem ela falava. Toda a aldeia sabia. A Dona Lurdes, do café, nunca perdia uma oportunidade para lançar olhares e sorrisos ao meu pai. E ele, tolo ou carente, respondia.
Naquela noite, ele saiu. E não voltou.
Tinha 13 anos e a minha infância acabou ali. A minha mãe chorou durante semanas. Eu tornei-me adulto demasiado cedo, a tentar ser o homem da casa sem saber o que isso significava. O meu irmão mais novo, o Tiago, fechou-se num silêncio que só se quebrava quando partia alguma coisa — pratos, copos, brinquedos. A nossa casa tornou-se um campo de batalha feito de silêncios e estilhaços.
Os dias passavam lentos. A minha mãe trabalhava no supermercado do senhor António e chegava a casa exausta. Eu tentava ajudar como podia: fazia o jantar, ajudava o Tiago com os trabalhos da escola, limpava o pó das fotografias antigas onde ainda sorríamos todos juntos.
Uma noite, ouvi a minha mãe ao telefone:
— Não posso perdoar-te, João. Não posso. — A voz dela era um fio de dor. — Os teus filhos precisam de ti e tu… tu escolheste outra vida.
O Tiago apareceu à porta da cozinha, olhos vermelhos.
— Ele não vai voltar, pois não?
Não soube responder. Abracei-o com força e prometi-lhe que tudo ia ficar bem. Mas era mentira.
Os anos passaram e aprendi a viver com a ausência do meu pai como quem aprende a viver com uma dor crónica. Habituamo-nos. Fingimos que não dói tanto. Mas dói sempre.
Quando fiz 18 anos, decidi sair de casa para estudar no Porto. A minha mãe chorou outra vez.
— Vais deixar-me sozinha com o Tiago?
— Mãe, preciso disto… Preciso de tentar ser alguém.
Ela não respondeu. Só me abraçou como se quisesse colar todos os pedaços partidos do nosso passado.
No Porto, tudo era diferente: as ruas cheias de gente apressada, os cafés onde ninguém conhecia o meu nome, a liberdade misturada com uma solidão nova. Fiz amigos — a Inês, o Rui e a Marta — mas nunca lhes contei toda a verdade sobre a minha família. Era mais fácil assim.
Certa noite, recebi uma chamada do Tiago:
— Mãe está no hospital.
O chão fugiu-me dos pés. Corri para a estação e apanhei o primeiro comboio para casa. Quando cheguei ao hospital de Vila Real, encontrei a minha mãe pálida, ligada a máquinas que apitavam baixinho.
— Foi só um susto — disse ela, tentando sorrir. — O coração prega partidas.
Mas eu sabia que era mais do que isso. Era o peso dos anos, das mágoas guardadas, das noites em claro à espera de um telefonema do meu pai que nunca veio.
A partir desse dia, voltei para casa todos os fins de semana. O Tiago tinha mudado: rebelde, zangado com o mundo inteiro. Uma noite discutimos à mesa.
— Tu foste embora! Deixaste-nos! — gritou ele.
— Eu tentei… tentei fazer o melhor!
— O melhor? O melhor era teres ficado! — Atirou o prato ao chão e saiu porta fora.
A minha mãe chorou baixinho enquanto eu limpava os cacos.
— Ele sente muito a tua falta… — murmurou ela.
Eu também sentia falta de tudo: do tempo em que éramos felizes sem saber, do cheiro do pão quente ao domingo de manhã, das histórias que o meu pai contava antes de adormecermos.
Um dia, recebi uma carta do meu pai. Não tinha remetente, mas reconheci a letra trémula:
“Filho,
Sei que falhei convosco. Sei que não há desculpa para o que fiz. Mas penso em vocês todos os dias. Gostava de vos ver.”
Mostrei a carta à minha mãe. Ela ficou em silêncio durante muito tempo.
— Queres vê-lo? — perguntou-me finalmente.
Não soube responder. Parte de mim queria abraçá-lo e perguntar-lhe porquê; outra parte queria gritar-lhe tudo o que nos tinha feito passar.
O Tiago descobriu a carta e ficou furioso.
— Vais mesmo perdoá-lo? Depois disto tudo?
— Não sei… Talvez precise disso para seguir em frente.
Ele saiu batendo a porta com força suficiente para abalar as paredes frágeis da nossa casa.
Acabei por marcar um encontro com o meu pai num café discreto na cidade vizinha. Quando o vi entrar — mais velho, mais magro — senti um nó na garganta.
— Olá, filho…
Ficámos em silêncio durante minutos intermináveis.
— Porque é que foste embora? — perguntei finalmente.
Ele olhou para as mãos e depois para mim:
— Porque era fraco. Porque não soube ser homem nem pai. Porque fugi dos meus próprios medos…
Chorei ali mesmo, sem vergonha nem raiva. Só tristeza acumulada durante anos demais.
Voltámos a falar algumas vezes depois disso. Nunca voltámos a ser uma família completa, mas aprendi a aceitar as imperfeições dos outros — e as minhas também.
Hoje vivo em Lisboa com a Inês — sim, aquela amiga da faculdade tornou-se o amor da minha vida — e temos uma filha pequena chamada Leonor. A minha mãe vem visitar-nos sempre que pode; o Tiago ainda luta com os seus fantasmas mas está melhor; e o meu pai… bem, ele tenta estar presente à sua maneira.
Às vezes olho para Leonor a dormir e pergunto-me: será que algum dia vou conseguir protegê-la das dores do mundo? Ou será que tudo o que podemos fazer é amá-los o melhor possível e esperar que isso baste?
E vocês? Conseguiram perdoar quem vos magoou? Ou há dores que nunca passam?