Quando as Filhas Querem Dividir o Nosso Lar: Entre o Amor e a Desilusão
— Mãe, não achas que já está na altura de pensarmos no futuro? — perguntou a Mariana, a mais velha, com aquele tom de voz que sempre usava quando queria convencer-me de alguma coisa.
Senti o coração apertar-se no peito. O futuro? O futuro era agora, era este momento em que finalmente podia sentar-me ao lado do António, olhar para o jardim que plantámos juntos e sentir que tudo valeu a pena. Mas ela continuou:
— Eu e o Rui andámos a pensar… E se dividíssemos a casa? Assim podíamos ficar todos juntos, cada um com o seu espaço. A Joana e a Sofia também gostavam da ideia.
Olhei para António. Ele mantinha-se calado, mas vi nos olhos dele o mesmo medo que sentia: o medo de perdermos aquilo por que tanto lutámos. A nossa casa não era apenas paredes e telhado — era o nosso refúgio, o resultado de anos de trabalho árduo, noites sem dormir, discussões sobre contas e sonhos partilhados à mesa da cozinha.
Lembro-me como se fosse ontem do dia em que nos mudámos para aqui. As meninas ainda pequenas, a correrem pelo quintal, a Joana a tropeçar e a chorar porque queria um quarto cor-de-rosa. O António a prometer-lhe que um dia teria. E eu, cansada mas feliz, a pensar que um dia tudo aquilo seria só nosso.
Mas agora as minhas filhas — as mesmas que embalei nos braços, que ajudei a estudar até tarde, que vi crescer e partir para as suas vidas — queriam voltar. Não para me visitar, mas para dividir o nosso lar ao meio, como se fosse uma fatia de bolo.
— Não é justo — disse eu, tentando manter a voz firme. — Este sempre foi o nosso sonho. Trabalhámos tanto para isto…
A Mariana suspirou.
— Mãe, tu sabes como está tudo caro. Arrendar uma casa é impossível. E tu própria disseste que querias ter a família por perto.
— Não assim! — interrompi, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. — Eu queria ter-vos por perto, claro. Mas não à custa de perder aquilo que construímos.
A Joana entrou na sala nesse momento, com o pequeno Tomás ao colo.
— Avó, posso ficar aqui hoje? — perguntou ele, inocente.
O António sorriu-lhe e abriu os braços. O Tomás correu para ele, rindo. E naquele instante percebi: talvez fosse egoísmo da minha parte não querer partilhar o nosso espaço. Mas também era egoísmo delas quererem tirar-nos o pouco descanso que finalmente conquistámos.
À noite, sentei-me na varanda com o António. O silêncio entre nós era pesado.
— Achas que estamos a ser maus pais? — perguntei-lhe.
Ele demorou a responder.
— Não sei… Só sei que já demos tudo o que tínhamos. Não sei se consigo dar mais.
As semanas passaram e as conversas tornaram-se cada vez mais tensas. A Mariana insistia:
— Mãe, pensa bem! Se dividirmos a casa ao meio, cada um fica com privacidade. Até podemos fazer uma entrada independente! A Sofia já falou com um arquiteto…
A Sofia, sempre prática, já tinha até desenhos e orçamentos. Mostrou-me tudo num papel:
— Vês? Aqui ficava o vosso lado, aqui o nosso…
Olhei para aqueles riscos e senti-me pequena. Como podiam elas achar que era tão simples? Que bastava uma parede para separar vidas tão diferentes?
O António começou a fechar-se em si mesmo. Passava horas no quintal, calado. Uma noite ouvi-o chorar baixinho no quarto. Fui ter com ele e abracei-o.
— Não quero perder isto — sussurrou ele. — Não quero perder-te.
Eu também não queria perder nada: nem ele, nem as filhas, nem a casa. Mas sentia-me encurralada.
As discussões começaram a afetar toda a família. A Joana deixou de vir aos domingos almoçar connosco. A Mariana falava-me com frieza ao telefone. A Sofia mandava mensagens secas: “Já pensaste melhor?”
Um dia, durante um jantar tenso em família, explodi:
— Vocês acham mesmo justo isto? Acham justo obrigarem-nos a escolher entre vocês e o nosso lar?
A Mariana levantou-se da mesa.
— Sabes o que não é justo? Tu teres uma casa enorme só para ti e para o pai enquanto nós andamos apertados! — gritou ela.
O silêncio caiu como uma pedra. O Tomás começou a chorar na sala ao lado.
Depois desse dia deixei de dormir bem. O António ficou doente; começou a ter dores no peito. Fomos ao hospital e disseram-nos que era stress.
A minha vizinha D. Amélia veio visitar-me e ouviu-me desabafar:
— Liliana, tens de pensar em ti também. As casas podem ser reconstruídas… mas os corações partidos nem sempre saram.
Comecei a evitar as minhas filhas. Sentia vergonha por não conseguir ser aquela mãe perfeita que tudo resolve com um sorriso e um abraço.
Um domingo à tarde, ouvi baterem à porta. Era a Joana, sozinha.
— Mãe… desculpa — disse ela, os olhos vermelhos de tanto chorar. — Eu só queria facilitar as coisas para todos… Mas percebo agora que estava a ser egoísta.
Abracei-a com força.
— Eu também quero ajudar-vos… Mas preciso do meu espaço. Preciso de sentir que ainda tenho algum controlo sobre a minha vida.
Ela assentiu.
— Talvez possamos encontrar outra solução…
Na semana seguinte reunimo-nos todos à mesa outra vez. Pela primeira vez em meses falámos sem gritos nem acusações. Decidimos procurar alternativas: talvez ajudar as meninas com uma entrada para arrendamento ou procurar casas mais pequenas nas redondezas.
O António recuperou um pouco do ânimo; voltou a sorrir quando vê os netos correrem pelo quintal.
Mas sei que nada será como antes. Há feridas que demoram a sarar; há palavras ditas que nunca se esquecem.
Agora sento-me muitas vezes sozinha na varanda e penso: será possível amar tanto os filhos sem nos perdermos de nós próprios? Será egoísmo querer guardar um bocadinho do sonho só para mim?