Entre Paredes: A Sombra de Uma Amizade

— Outra vez, Mariana? — perguntei, tentando esconder o cansaço na voz enquanto ela já atravessava o corredor da minha casa sem esperar resposta. O cheiro do café que fervia na cozinha misturava-se com o perfume forte dela, invadindo o meu espaço como uma onda.

Ela sorriu, aquele sorriso largo que sempre me pareceu demasiado ensaiado. — Oh, Ana, desculpa! É só um bocadinho de açúcar. O Tiago está a fazer um bolo para a escola e eu esqueci-me de comprar ontem no Pingo Doce. — E sem esperar por mim, já estava a abrir o armário.

Fiquei ali parada, sentindo o chão fugir-me dos pés. Não era só o açúcar. Era o sal na semana passada, os ovos no domingo de manhã, o azeite há dois dias. E sempre com aquela pressa, aquele à-vontade que me fazia sentir uma intrusa na minha própria casa.

O pior era que os nossos filhos, o João e o Tiago, eram inseparáveis. Cresceram juntos desde bebés, partilhando brinquedos e segredos no quintal. Separá-los parecia impossível. E eu… eu não queria ser a mãe antipática do bairro.

— Mariana, olha… — tentei começar, mas ela já estava a falar do marido, do trabalho novo dele na Câmara Municipal e de como a vida estava difícil. Sentei-me à mesa, ouvindo-a desfiar as suas queixas enquanto mexia o café com força desnecessária.

— Sabes como é, Ana… O Pedro chega sempre tarde, eu fico sozinha com tudo… — suspirou ela, olhando-me com olhos cansados. — Ainda bem que te tenho aqui ao lado.

Senti uma pontada de culpa. Talvez estivesse a ser egoísta. Talvez Mariana precisasse mesmo de mim. Mas porque é que tudo tinha de ser sempre à custa do meu espaço?

Naquela noite, depois de jantar, sentei-me no sofá com o meu marido, Rui. Ele olhou para mim por cima do jornal.

— Outra vez a Mariana? — perguntou, sem levantar muito a voz para não acordar o João.

— Não sei o que fazer… — confessei. — Sinto-me sufocada. Ela entra aqui como se fosse dona da casa. E depois há os miúdos…

Rui pousou o jornal e pegou na minha mão. — Tens de lhe dizer alguma coisa, Ana. Não podes continuar assim.

Mas como? Como dizer não à Mariana sem criar um escândalo no bairro? Todos se conhecem aqui. As pessoas falam. E eu já sentia os olhares das outras vizinhas quando passava na rua.

No dia seguinte, Mariana apareceu outra vez. Desta vez queria farinha. O João e o Tiago estavam no quintal a jogar à bola e ouvi-os rir alto. Mariana entrou apressada e começou logo a falar do aniversário do Tiago.

— Estava a pensar fazer uma festa cá em casa, mas sabes como é… O espaço é pequeno… Se calhar era melhor fazer aqui no teu quintal, não achas? — perguntou ela, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Senti o sangue ferver-me nas veias. O meu quintal? A minha casa? Já não bastava invadir-me todos os dias?

— Mariana, desculpa… Mas acho que não vai dar. O Rui anda cansado e eu também… — tentei explicar.

Ela ficou séria por um segundo, depois sorriu outra vez. — Claro, claro… Não te preocupes! Eu percebo.

Mas percebia mesmo? Ou ia contar a toda a gente que eu era egoísta?

Nos dias seguintes, senti uma distância estranha entre nós. Mariana já não batia à porta com tanta frequência. Quando nos cruzávamos no supermercado ou na padaria da Dona Lurdes, ela cumprimentava-me com um aceno rápido e um sorriso forçado.

O João começou a perguntar porque é que já não podia ir tanto à casa do Tiago. Eu tentava explicar-lhe que às vezes as pessoas precisam de espaço, mas ele não entendia.

Uma tarde, ouvi vozes altas no quintal. Fui lá fora e vi Mariana a discutir com o Pedro. Ela chorava e ele gesticulava furioso.

— Sempre foste assim! Nunca sabes pedir ajuda! — gritava ele.

Mariana olhou para mim por cima do ombro dele e vi nos seus olhos uma mistura de vergonha e desespero.

Nessa noite não consegui dormir. Senti-me culpada por ter imposto limites. E se Mariana estivesse mesmo sozinha? E se eu tivesse sido demasiado dura?

No dia seguinte, bati à porta dela com um bolo acabado de fazer.

— Olá… — disse eu, sentindo-me estranhamente nervosa. — Fiz bolo a mais… Queres um pouco?

Ela olhou para mim durante uns segundos longos demais antes de sorrir.

— Obrigada, Ana… — disse ela baixinho. — Desculpa se abusei da tua boa vontade.

Sentámo-nos à mesa dela em silêncio durante algum tempo. Depois começámos a falar dos miúdos, da escola, das contas para pagar.

Percebi então que talvez Mariana não quisesse apenas açúcar ou farinha. Talvez quisesse sentir-se menos sozinha. Talvez eu também precisasse disso sem perceber.

A nossa relação mudou depois desse dia. Não voltámos a ser tão próximas como antes, mas aprendemos a respeitar os limites uma da outra.

Às vezes penso: será que fui demasiado dura? Ou será que finalmente aprendi a proteger o meu espaço sem deixar de ser amiga?

E vocês? Já sentiram esta linha ténue entre ajudar e perder-se a si próprios?