Entre Comparações e Silêncios: O Peso de Ser a Segunda Mulher
— Sabes, a Sofia nunca se esquecia de trazer o bolo preferido da minha mãe nos aniversários dela. — A voz do Rui ecoou na cozinha, enquanto eu tentava, em vão, disfarçar o tremor nas mãos ao cortar as fatias do pão.
Fingi não ouvir. O cheiro do café fresco misturava-se com o aroma amargo da humilhação. Quantas vezes mais teria de ouvir o nome da Sofia? Quantas vezes mais teria de ser comparada à mulher que veio antes de mim?
— Talvez devesses perguntar-lhe a receita — continuou ele, sem perceber o silêncio pesado que se abatia entre nós.
Olhei para ele, tentando conter as lágrimas. — Rui, eu não sou a Sofia. E não quero ser.
Ele encolheu os ombros, como se eu estivesse a exagerar. — Só acho que poderias esforçar-te um bocadinho mais. A minha mãe sente falta dessas pequenas coisas.
A minha mãe sempre me disse para nunca me anular por ninguém. Mas ali estava eu, a tentar agradar a uma sogra que me olhava como se fosse uma intrusa, e a um marido que parecia desejar outra mulher à mesa.
No primeiro Natal juntos, levei horas a preparar o bacalhau com todos, seguindo à risca a receita da Dona Emília, minha sogra. Quando coloquei o prato na mesa, ela olhou-me de cima abaixo e disse:
— A Sofia punha sempre um bocadinho de noz-moscada. Dava outro sabor.
Senti o rosto arder. O Rui sorriu, como se fosse uma piada inofensiva. Mas para mim era mais uma facada.
Os meses passaram e as comparações tornaram-se rotina. Se eu escolhia um vestido novo, era porque “a Sofia tinha mais bom gosto”. Se esquecia um aniversário, era porque “a Sofia nunca se esquecia”. Até quando discutíamos sobre ter filhos, ele dizia:
— A Sofia sempre quis uma família grande.
Comecei a duvidar de mim própria. Será que era mesmo insuficiente? Será que alguma vez conseguiria ser amada por quem eu era?
A minha relação com a Dona Emília era feita de silêncios e olhares de soslaio. Ela convidava-me para almoços de domingo, mas fazia questão de mencionar a ex-nora em cada conversa.
— A Sofia fazia questão de ajudar na cozinha. — dizia ela, enquanto eu lavava os pratos sozinha.
Certa tarde, depois de mais um desses almoços, sentei-me no carro e chorei compulsivamente. Liguei à minha mãe.
— Filha, tu não tens de provar nada a ninguém. — disse ela com aquela firmeza doce que só as mães sabem ter. — Se o Rui não te valoriza pelo que és, talvez não seja contigo que ele queira estar.
Essas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a reparar em pequenos detalhes: o Rui raramente me elogiava; evitava conversas profundas; e sempre que discutíamos, acabava por mencionar como “a Sofia sabia lidar melhor com estas situações”.
Uma noite, depois de um jantar particularmente tenso em casa da sogra, decidi confrontá-lo.
— Rui, porque é que estás sempre a comparar-me à tua ex-mulher? Achas mesmo justo? Achas que isso é saudável para nós?
Ele ficou em silêncio durante uns segundos longos demais.
— Não é isso… Só estou habituado a certas coisas. A Sofia fazia parte da família durante muitos anos…
— E eu? Eu sou tua mulher agora! Não mereço respeito? Não mereço ser vista pelo que sou?
Ele levantou-se da mesa e saiu para a varanda. Fiquei ali sentada, sozinha, com o som do trânsito ao longe e o coração aos pulos.
Naquela noite dormimos costas voltadas. Senti-me invisível.
Os dias seguintes foram frios e distantes. O Rui começou a chegar mais tarde do trabalho. Eu evitava ir a casa da sogra. O silêncio entre nós era ensurdecedor.
Certa manhã, encontrei uma caixa no armário do quarto. Lá dentro estavam fotografias do Rui com a Sofia: viagens, festas de família, sorrisos cúmplices. Senti uma pontada no peito. Era como se nunca tivesse tido hipótese.
Quando ele chegou a casa nessa noite, mostrei-lhe a caixa.
— Porque é que guardas isto tudo? Porque é que não consegues deixar o passado para trás?
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.
— Não sei… Talvez porque tenho medo de perder tudo outra vez.
— Mas já me estás a perder agora! — gritei, incapaz de conter a dor.
Ele sentou-se ao meu lado e chorou. Pela primeira vez vi o Rui vulnerável, despido das comparações e das defesas.
— Desculpa… Eu não sabia que te estava a magoar tanto.
— Eu só quero ser suficiente para ti — sussurrei.
A partir desse dia começámos a falar mais abertamente sobre os nossos medos e inseguranças. Fomos juntos à terapia de casal. A relação com a Dona Emília continuou difícil, mas aprendi a impor limites:
— Dona Emília, agradeço as sugestões, mas prefiro fazer as coisas à minha maneira.
Ela torceu o nariz, mas aos poucos começou a respeitar-me mais.
O Rui ainda tropeça em comparações de vez em quando, mas agora sabe pedir desculpa e valorizar quem sou.
Hoje olho para trás e vejo como estive perto de me perder numa tentativa desesperada de agradar aos outros. Percebi que nunca serei a Sofia — nem quero ser. Sou a Marta, com todas as minhas imperfeições e qualidades.
Pergunto-me: quantas mulheres vivem presas às sombras do passado dos seus companheiros? Quantas se anulam para caber num molde que nunca foi feito para elas? E tu, já sentiste que tinhas de ser outra pessoa para seres amada?