Férias Que Nunca Vieram – Como o Crédito e a Família Destruíram os Meus Sonhos
— Outra vez, mãe? — perguntei, sentindo o cheiro acre de tabaco invadir-me as narinas assim que abri a porta do nosso apartamento, acabado de remodelar com tanto sacrifício.
Ela nem sequer olhou para mim. Estava sentada no sofá novo, aquele que comprei em prestações, a cinza do cigarro a cair-lhe no colo. — Precisas de relaxar, Mariana. Andas sempre tão tensa…
O meu peito apertou-se. Tinha passado o dia inteiro a sonhar com as férias que planeei durante meses. Um fim de semana em Vila Nova de Milfontes, só eu, o Miguel e o nosso filho, o Tomás. Mas tudo aquilo parecia cada vez mais distante. O crédito da casa, as contas por pagar, e agora… a minha mãe, outra vez a invadir o nosso espaço, como se fosse dela.
— Mãe, já te pedi para não fumares aqui dentro. O Tomás tem asma! — tentei controlar a voz, mas saiu-me mais alto do que queria.
Ela encolheu os ombros, apagou o cigarro no prato do pequeno-almoço e levantou-se devagar. — Não te preocupes, filha. Já vou embora.
Mas eu sabia que era mentira. Ela nunca ia embora. Desde que o meu pai morreu, há dois anos, ela tornou-se uma sombra constante na nossa vida. Primeiro vinha só aos fins de semana, depois começou a aparecer durante a semana… e agora já tinha uma gaveta no nosso quarto de hóspedes.
O Miguel entrou na sala nesse momento, com o Tomás ao colo. Olhou para mim e depois para a minha mãe. O silêncio entre nós era pesado, cheio de tudo aquilo que nunca dizíamos.
— Mariana, podemos falar um minuto? — perguntou ele, baixinho.
Fui atrás dele para a cozinha. O Tomás ficou na sala com a avó, que lhe ofereceu um rebuçado sem sequer perguntar se podia.
— Isto não pode continuar assim — disse o Miguel, encostando-se ao balcão. — Eu sei que ela é tua mãe, mas… estamos a perder-nos nisto tudo. Tu estás sempre cansada, eu quase não te vejo sorrir…
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Achas que eu não sei? Achas que eu não sinto? Mas o que queres que faça? Ela não tem para onde ir…
— Tem sim — interrompeu ele. — Tem a casa dela! Só não quer estar sozinha.
— E tu queres que eu seja a filha que abandona a mãe? Depois de tudo o que ela passou com o pai?
Ele suspirou. — Não é isso… Só queria que pensasses em nós também. No Tomás. Em ti.
A verdade é que eu já não sabia quem era “nós”. Desde que assinei aquele contrato de crédito para comprar este apartamento — porque era “o melhor para a família”, como dizia a minha mãe — que tudo mudou. O dinheiro nunca chegava ao fim do mês. As discussões começaram por coisas pequenas: quem pagava o quê, quem ficava com o Tomás quando eu tinha de fazer horas extra no hospital… Depois vieram as acusações: “Tu só pensas em ti”, “Nunca tens tempo para mim”, “A tua mãe está sempre aqui”.
As férias eram o meu último sonho. Tinha feito contas, cortado em tudo: deixei de ir ao cabeleireiro, vendi roupa online, recusei convites para jantares com amigas. Tudo para conseguir aqueles três dias junto ao mar.
Naquela noite, sentei-me na cama ao lado do Miguel. Ele já dormia ou fingia dormir. Fiquei ali às escuras, a ouvir a respiração dele e os passos da minha mãe no corredor. Senti-me esmagada pelo peso das escolhas erradas.
No dia seguinte, acordei com uma mensagem do banco: “A sua prestação será debitada amanhã”. O saldo da conta era quase zero.
Fui à sala e encontrei a minha mãe a ver televisão com o Tomás ao colo.
— Mãe… — comecei, mas ela interrompeu-me:
— Precisas de dinheiro? Eu posso emprestar-te uns trocos…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Era sempre assim: ela dava-me migalhas e depois cobrava-as em culpa.
— Não preciso de nada! Só queria… só queria um pouco de paz! — gritei.
O Tomás começou a chorar e o Miguel apareceu à porta da sala.
— Chega! — disse ele. — Isto não é vida para ninguém!
A minha mãe levantou-se devagar e foi buscar o casaco.
— Vou dar uma volta — murmurou.
Assim que ela saiu, sentei-me no chão e chorei como há muito tempo não chorava. O Miguel ajoelhou-se ao meu lado e abraçou-me.
— Mariana… temos mesmo de mudar alguma coisa.
Eu sabia disso. Mas como se muda uma vida inteira construída em cima de obrigações e dívidas?
Naquela tarde, sentei-me com a minha mãe na varanda. O sol batia-lhe no rosto enrugado e ela parecia mais velha do que nunca.
— Mãe… precisamos de conversar.
Ela olhou para mim com aqueles olhos cansados.
— Eu sei que estou a ser um peso. Mas tu és tudo o que me resta…
— E tu és tudo o que me prende — pensei, mas não disse.
Expliquei-lhe que precisava do nosso espaço, que o Tomás precisava de estabilidade, que eu precisava de respirar sem sentir culpa ou medo de falhar.
Ela chorou baixinho e eu chorei com ela. Não havia vilões nesta história; só pessoas magoadas demais para conseguirem amar sem ferir.
No fim dessa semana, cancelei as férias. Usei o dinheiro para pagar parte do crédito e comprei um tapete novo para tapar as marcas de cinza no chão da sala.
O Miguel ficou mais distante. A minha mãe começou a passar mais tempo na casa dela, mas nunca deixou de ligar todos os dias: “Precisas de alguma coisa?”.
O Tomás desenhou uma casa com três pessoas e um sol enorme por cima. Mostrou-me orgulhoso: — Somos nós felizes outra vez?
Olhei para ele e sorri com lágrimas nos olhos.
Agora escrevo esta história sentada na mesma varanda onde tentei explicar à minha mãe porque é tão difícil ser filha e mãe ao mesmo tempo. Pergunto-me: quantos sonhos sacrificamos em nome da família? E será que algum dia conseguimos perdoar-nos por isso?