Deixar a Família Para Trás: O Meu Irmão Diz Que Sou Egoísta, Mas Não Me Arrependo
— Vais mesmo deixar-nos assim, Miguel? — A voz do meu irmão, Rui, ecoava pela cozinha fria, carregada de raiva e desilusão. Eu olhava para o chão, incapaz de lhe responder nos olhos. O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com o aroma da terra húmida que entrava pela porta entreaberta. A minha mãe, sentada à mesa, mexia nervosamente no lenço preto que usava desde que o pai morreu.
— Não é uma questão de deixar… Eu preciso disto, Rui. Preciso de tentar outra vida — murmurei, sentindo o nó na garganta apertar-se ainda mais.
Rui levantou-se de rompante, a cadeira a arrastar-se no soalho gasto. — Precisas? E nós? Achas que a mãe aguenta isto tudo sozinha? Achas que eu não queria sair daqui também?
A verdade é que eu sabia exatamente o que ele sentia. Crescemos juntos naquela aldeia perdida no distrito de Viseu, rodeados de campos e oliveiras, com as mãos calejadas desde pequenos a ajudar na quinta. Ouvíamos os outros rapazes da escola falar dos sonhos deles — ser engenheiro, médico, até futebolista — mas para nós, o futuro parecia já escrito: cuidar da terra, tratar dos animais, envelhecer ali.
A mãe nunca se queixou. Depois do acidente do pai, ela tornou-se tudo: mãe, pai, dona da casa e da quinta. Lembro-me das noites em que a ouvia chorar baixinho no quarto ao lado, pensando que estávamos a dormir. Rui sempre foi o filho responsável, o que nunca levantava problemas. Eu era o mais novo, o inquieto, aquele que sonhava com ruas cheias de gente e luzes de cidade.
Quando terminei o secundário, recebi uma carta da Universidade de Lisboa: fora aceite em Engenharia Informática. O coração bateu-me tão forte que quase não consegui respirar. Mas logo depois veio a culpa — como podia eu abandonar a mãe e o Rui?
— Miguel, tu mereces isto — disse-me a mãe nessa noite, com um sorriso cansado. — O teu pai teria orgulho em ti.
Mas Rui nunca aceitou. Na véspera da minha partida, discutimos como nunca antes.
— Vais ser mais um daqueles que se esquece de onde veio! — gritou ele. — Quando precisares de alguma coisa, não te esqueças quem ficou para trás!
A viagem para Lisboa foi feita num autocarro velho, com uma mala pequena e o coração apertado. Lembro-me de olhar pela janela e ver os campos a desaparecerem ao longe. Senti-me traidor e livre ao mesmo tempo.
A cidade era tudo aquilo que eu imaginara e mais ainda: barulhenta, cheia de oportunidades e perigos. Os primeiros meses foram duros. Partilhei um quarto minúsculo com dois colegas em Chelas; muitas noites jantei apenas pão com queijo porque o dinheiro não chegava para mais. Mas havia algo intoxicante naquela liberdade.
Falava com a mãe todas as semanas ao telefone. Ela perguntava sempre se estava a comer bem, se tinha amigos, se estudava muito. Rui raramente atendia quando eu ligava; quando atendia, era seco:
— A mãe está bem. A vaca pariu ontem. Não te preocupes connosco.
No Natal desse ano voltei à aldeia. O Rui mal me olhou nos olhos durante os três dias em que estive lá. A mãe tentava disfarçar a tensão com conversas sobre as colheitas e os vizinhos.
Uma noite, ouvi-os a discutir na cozinha:
— Ele não devia ter ido embora! — dizia Rui, quase a chorar.
— Ele tem direito à vida dele! — respondia a mãe.
Senti-me dividido entre dois mundos: o da minha família e o da minha nova vida em Lisboa.
Os anos passaram depressa. Licenciei-me com boas notas e consegui um estágio numa empresa tecnológica. O salário era baixo mas suficiente para alugar um pequeno T1 em Benfica. Comecei a namorar a Sofia, uma colega do trabalho; ela vinha de uma família lisboeta abastada e achava graça ao meu sotaque do interior.
A distância entre mim e Rui só aumentava. Quando ligava para casa, era sempre a mãe que atendia; ela dizia que ele estava ocupado na quinta ou na vila. Senti-me cada vez mais estrangeiro na minha própria família.
Em 2018, a mãe adoeceu subitamente. Um AVC deixou-a sem fala e com metade do corpo paralisado. Fui imediatamente para Viseu; Rui estava exausto, com olheiras fundas e as mãos ainda mais calejadas do que me lembrava.
— Agora vens? Quando já não há nada a fazer? — atirou ele assim que entrei no hospital.
— Vim assim que soube… — tentei explicar.
— Pois… mas não estiveste cá quando ela precisava! — gritou ele, lágrimas nos olhos.
Fiquei semanas na aldeia a ajudar como podia: dava banho à mãe, fazia-lhe companhia enquanto Rui tratava dos animais e das burocracias do hospital. Mas sentia-me um intruso; os vizinhos olhavam-me como quem vê um forasteiro.
Quando a mãe morreu, Rui recusou-se a falar comigo durante o funeral. Voltou imediatamente para casa depois do enterro; eu fiquei sozinho no cemitério, olhando para a campa fresca e perguntando-me se tinha valido a pena tudo aquilo.
Voltei para Lisboa com um peso insuportável no peito. Sofia tentou consolar-me:
— Fizeste o que podias… Não podes carregar o mundo às costas.
Mas as palavras dela soavam vazias. Comecei a trabalhar ainda mais horas; evitava pensar na aldeia, no Rui, na infância perdida.
Um ano depois recebi uma carta dele:
“Miguel,
Não sei se algum dia te vou perdoar por teres ido embora. A mãe sofreu muito com a tua ausência, mesmo que nunca te tenha dito nada. Eu fiquei cá porque alguém tinha de ficar. Espero que estejas feliz aí em Lisboa.
Rui”
Li aquela carta dezenas de vezes. Quis responder-lhe mas não consegui encontrar as palavras certas.
Hoje sou engenheiro numa empresa grande; tenho uma vida confortável em Lisboa, mas há noites em que sonho com os campos verdes da infância e acordo com lágrimas nos olhos. Pergunto-me se fui egoísta ou apenas humano por querer algo diferente para mim.
Será possível alguma vez reconciliarmo-nos com as escolhas que fazemos? Ou ficamos sempre presos entre aquilo que deixámos para trás e aquilo que conquistámos? O que fariam vocês no meu lugar?