Entre Panelas e Sonhos: A Luta de Clara por Reconhecimento
— Clara, já puseste a roupa a lavar? — perguntou António, sem sequer levantar os olhos do telemóvel.
Senti o estômago apertar-se. Era sempre assim: as perguntas dele nunca eram sobre mim, mas sobre o que eu tinha feito ou deixado por fazer. Olhei para as minhas mãos, ainda húmidas do detergente da loiça, e respondi num tom baixo:
— Já pus, António. E o jantar está quase pronto.
Ele assentiu, distraído, e saiu da cozinha. Fiquei ali parada, a olhar para o vapor que subia da panela. Senti-me pequena, como se a minha existência se resumisse àquela cozinha, àquela casa. Lembrei-me de quando era miúda e dizia à minha mãe que queria ser professora. Ela sorria e dizia: “Tens de estudar muito, filha.” Estudei. Licenciei-me em História. Mas depois vieram os filhos, a casa, e o António a dizer: “Agora não é altura para trabalhares fora. Os miúdos precisam de ti.”
Os miúdos cresceram. O João já tem 12 anos e a Mariana 9. Mas eu continuei aqui, presa nesta rotina de tarefas invisíveis.
Naquela noite, depois de todos se deitarem, sentei-me na sala com o meu caderno de apontamentos. Escrevi: “O que é que eu quero para mim?” As lágrimas caíram-me sem aviso. Senti vergonha por chorar sozinha, mas também raiva — raiva de mim própria por ter deixado isto acontecer.
No dia seguinte, tentei falar com António ao pequeno-almoço.
— António, tenho pensado em voltar a estudar. Talvez tirar um mestrado à noite…
Ele olhou-me como se eu tivesse dito que queria ir viver para Marte.
— Estás maluca? E quem é que vai tratar da casa? E dos miúdos? Achas que temos dinheiro para isso?
Senti o sangue ferver-me nas veias.
— António, eu não sou só a mulher da limpeza cá de casa! Também tenho sonhos! Não posso continuar assim…
Ele abanou a cabeça e saiu porta fora, deixando-me sozinha com a chávena de café a tremer nas mãos.
Durante dias, mal nos falámos. Ele chegava tarde do trabalho e eu fingia não reparar no silêncio pesado entre nós. A Mariana começou a perguntar porque é que eu estava triste. O João fechou-se ainda mais no quarto dele.
Uma noite, depois de todos se deitarem, liguei à minha irmã, Sofia.
— Não aguento mais — desabafei. — Sinto-me uma empregada cá em casa. O António não me vê…
— Clara, tu tens de te impor — disse ela. — Se não fores tu a lutar pelos teus sonhos, ninguém vai lutar por ti.
As palavras dela ecoaram na minha cabeça durante dias. Comecei a pesquisar cursos online gratuitos. Inscrevi-me num curso de História da Arte à noite, sem dizer nada ao António.
Comecei a sentir-me viva outra vez. Passava horas a ler artigos, a fazer trabalhos. A Mariana reparou primeiro.
— Mãe, porque é que estás sempre no computador?
Sorri-lhe.
— Estou a estudar outra vez, filha. Quero ser professora um dia.
Ela abraçou-me com força.
O António demorou mais tempo a perceber. Uma noite, encontrou-me na sala rodeada de livros e apontamentos.
— O que é isto?
Respirei fundo.
— Estou a estudar. Inscrevi-me num curso online. Preciso disto para mim.
Ele bufou.
— E quem é que vai tratar das coisas cá em casa?
Levantei-me devagar.
— António, eu faço tudo há anos sem reclamar. Mas agora preciso de tempo para mim também. Os miúdos já são crescidos. Tu também podes ajudar.
Ele ficou calado durante uns segundos longos demais.
— Isto vai passar-te — disse apenas, antes de sair da sala.
Mas não passou. Pelo contrário: cada dia sentia-me mais determinada. Comecei a sair para estudar na biblioteca municipal ao sábado de manhã. A Mariana vinha comigo às vezes e fazia os trabalhos de casa ao meu lado.
A tensão em casa aumentou. O António começou a chegar ainda mais tarde do trabalho. Uma noite discutimos à frente dos miúdos.
— Não percebes que estás a destruir esta família? — gritou ele.
— Não estou a destruir nada! Só quero ser feliz! Não posso continuar a viver como uma sombra!
O João saiu disparado para o quarto dele e bateu com a porta. A Mariana começou a chorar baixinho.
Senti-me horrível por causar sofrimento aos meus filhos, mas também sabia que não podia voltar atrás.
Nessa noite dormi no sofá. De manhã acordei com o som dos pratos na cozinha. Era o António a preparar o pequeno-almoço para os miúdos — pela primeira vez em anos.
Durante semanas vivemos assim: cada um no seu canto, quase sem falar. Mas aos poucos as coisas começaram a mudar. O João veio ter comigo um dia:
— Mãe… desculpa ter sido parvo contigo. Eu gosto de te ver feliz.
Abracei-o com força e chorei em silêncio.
O António demorou mais tempo. Um domingo à tarde, entrou na sala enquanto eu estudava e sentou-se ao meu lado.
— Clara… Eu sei que tenho sido injusto contigo. Só tenho medo de te perder… De perder esta família.
Olhei-o nos olhos pela primeira vez em muito tempo.
— Eu também tive medo durante anos… Medo de perder quem sou.
Ele pegou na minha mão e ficou ali calado durante muito tempo.
Hoje continuo a estudar e já dou explicações de História a alguns adolescentes do bairro. O António ajuda mais em casa e até começou a cozinhar ao fim-de-semana com os miúdos. Ainda discutimos às vezes — ninguém muda de um dia para o outro — mas sinto que finalmente me vê como mulher e não apenas como empregada doméstica.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem assim caladas, presas numa rotina invisível? Quantas terão coragem de lutar pelos seus sonhos? E vocês… já sentiram que deixaram de ser vistas pelo que realmente são?