A Sogra Impõe Condições – A História de Eulália
— Eulália, ou fazes como eu digo, ou não entras mais nesta casa! — A voz da Dona Amélia ecoou pelo corredor, cortando o silêncio pesado que pairava desde o almoço. Eu estava de pé, junto à porta da cozinha, as mãos trémulas agarradas ao pano de louça, tentando conter as lágrimas que ameaçavam cair. O meu marido, Rui, olhava para mim com aquele olhar de quem pede desculpa sem coragem de abrir a boca.
Naquele momento, tudo o que eu queria era desaparecer. Mas não podia. Não depois de tudo o que tinha passado desde que me casei com o Rui. Não depois de anos a tentar agradar à Dona Amélia, a sogra que nunca me aceitou verdadeiramente.
Lembro-me do primeiro dia em que entrei nesta casa, há sete anos. O cheiro a café acabado de fazer, o tapete gasto no corredor, as fotografias antigas nas paredes. Dona Amélia recebeu-me com um sorriso forçado e um olhar avaliador. “És tu a Eulália? Esperava alguém… diferente.” Nunca soube se era um elogio ou uma crítica. Mas desde então, cada gesto meu parecia ser escrutinado.
O Rui sempre foi o filho preferido. O menino dos olhos dela. E eu, a forasteira que veio roubar-lhe o filho. No início, tentei ser compreensiva. “Ela só precisa de tempo”, dizia-me a minha mãe ao telefone. Mas o tempo passou e as coisas só pioraram.
A gota de água foi naquele fatídico almoço de terça-feira. Dona Amélia insistiu em fazer bacalhau à Brás, mesmo sabendo que eu era alérgica a ovos. “Se não comes, é porque não queres fazer parte da família”, disse ela, empurrando o prato na minha direção. O Rui ficou calado. Eu tentei explicar, mais uma vez, mas ela não quis ouvir.
— Não é só pelo bacalhau, Eulália — continuou ela agora, com os braços cruzados — É tudo! A maneira como educas os teus filhos, como arrumas a casa, até como falas! Nesta família há regras!
Senti o sangue ferver-me nas veias. Olhei para o Rui, à espera de um gesto, uma palavra de apoio. Nada. Ele baixou os olhos e ficou a mexer no telemóvel.
— Rui, diz alguma coisa! — supliquei.
Ele encolheu os ombros.
— Sabes como a minha mãe é… Não vale a pena discutir.
Foi aí que percebi que estava sozinha. Sozinha naquela casa cheia de gente. Sozinha naquele casamento onde eu era sempre a segunda escolha.
Naquela noite, depois de todos se recolherem aos quartos, sentei-me na varanda com uma manta sobre os ombros. O vento frio do outono fazia-me arrepiar. Peguei no telemóvel e liguei à minha mãe.
— Mãe… não aguento mais — disse-lhe entre soluços.
Ela ouviu-me em silêncio, como sempre fez.
— Filha, tu tens de pensar em ti. Tens dado tudo por essa família e ninguém te valoriza. Até quando vais deixar que te tratem assim?
As palavras dela ficaram a ecoar-me na cabeça durante dias. No trabalho, mal conseguia concentrar-me. Em casa, cada pequeno gesto da Dona Amélia era uma provocação: “Não sabes dobrar os lençóis? Na minha altura fazia-se assim!”, “Os meninos estão muito mimados… culpa tua!”, “O Rui nunca gostou de sopa de legumes… porque insistes?”.
Comecei a evitar estar em casa. Ficava mais tempo no escritório, inventava reuniões, ia buscar os miúdos mais tarde à escola. Sentia-me uma estranha na minha própria vida.
Uma noite, depois de mais uma discussão por causa do jantar — Dona Amélia achava que eu devia pôr mais sal na comida — fechei-me na casa de banho e olhei-me ao espelho. Quem era aquela mulher de olhos inchados e cabelo desgrenhado? Onde estava a Eulália cheia de sonhos que queria ser professora e viajar pelo mundo?
O Rui bateu à porta.
— Estás bem?
— Achas que isto é vida? — perguntei-lhe, sem conseguir conter as lágrimas.
Ele suspirou.
— A minha mãe é assim… Não vai mudar agora.
— E tu? Vais mudar?
Silêncio.
Na manhã seguinte tomei uma decisão. Fui buscar os miúdos à escola e levei-os ao parque. Sentámo-nos na relva e vi-os brincar como se nada no mundo pudesse magoá-los.
— Mãe, porque estás triste? — perguntou o Tomás, o mais velho.
Sorri-lhe com esforço.
— Às vezes os adultos também ficam tristes, filho. Mas prometo que vou ficar melhor.
Quando voltámos para casa, Dona Amélia estava à porta à nossa espera.
— Onde foste com eles? Não avisas ninguém? Isto não é maneira de ser mãe!
Respirei fundo e olhei-a nos olhos.
— Dona Amélia, chega! Estou farta dos seus comentários e das suas regras. Esta é a minha família também e vou educar os meus filhos como acho melhor!
Ela ficou vermelha de raiva.
— Enquanto viveres nesta casa fazes como eu digo!
O Rui apareceu atrás dela, hesitante.
— Rui, ou me apoias ou vou embora — disse-lhe com firmeza.
Ele olhou para mim e depois para a mãe. Vi-o hesitar, vi-o lutar consigo mesmo. Mas no fim… baixou os olhos outra vez.
Naquela noite fiz as malas em silêncio. Os miúdos perceberam que algo estava errado mas não disseram nada. Liguei à minha mãe e pedi-lhe para nos receber por uns tempos.
Quando saí pela porta com as malas e os filhos pela mão, Dona Amélia nem sequer se despediu. O Rui ficou parado no corredor, sem coragem para me olhar nos olhos.
Na casa da minha mãe reencontrei um pouco da paz que já nem me lembrava que existia. Os miúdos voltaram a sorrir sem medo de serem repreendidos por tudo e por nada. Eu comecei a dormir melhor.
O Rui ligou-me algumas vezes nas semanas seguintes. Pedia-me para voltar, dizia que sentia a nossa falta. Mas nunca falou em mudar nada realmente importante. Nunca falou em sair da casa da mãe dele ou em pôr limites à Dona Amélia.
Um dia fui chamada à escola do Tomás porque ele tinha tido um ataque de ansiedade. A psicóloga perguntou-me como estava o ambiente em casa e eu contei-lhe tudo. Ela olhou para mim com compaixão e disse:
— Às vezes proteger os nossos filhos significa afastá-los do que nos faz mal.
Foi aí que percebi que não podia voltar atrás. Que merecia mais do que migalhas de amor e respeito.
Hoje vivo num pequeno apartamento alugado com os meus filhos. Não é fácil ser mãe solteira em Portugal — as contas apertam, o trabalho consome-me, há dias em que me sinto sozinha até ao osso. Mas quando vejo os meus filhos felizes e livres, sei que fiz a escolha certa.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres continuam presas ao medo de desagradar aos outros? Quantas sacrificam a sua felicidade para manter uma paz falsa? Será que algum dia vamos aprender a dizer basta antes de nos perdermos completamente?