Quando a Verdade Dói: Amizade, Traição e um Segredo de Família
— Não me olhes assim, Mariana. Eu… eu não sei o que dizer.
As palavras da Inês ecoaram pelo quarto abafado do hospital de Santa Maria. O cheiro a desinfetante misturava-se com o perfume doce do bebé recém-nascido, mas nada conseguia limpar o nó que se formava na minha garganta. Olhei para o pequeno Tomás, enrolado numa manta azul-clara, e o mundo pareceu parar. Os olhos dele — castanhos, profundos, com aquele brilho inquietante — eram iguais aos do Rui. Não era só imaginação. Não podia ser.
Senti as pernas fraquejarem e agarrei-me à cadeira junto à cama da Inês. Ela desviou o olhar, fitando a janela onde a chuva batia com força. O silêncio entre nós era pesado, quase insuportável.
— Inês… — tentei, mas a voz saiu-me rouca. — Diz-me que não é verdade.
Ela mordeu o lábio inferior, as lágrimas a ameaçarem cair. — Mariana, eu nunca quis magoar-te. Foi só uma vez… Eu estava tão perdida naquela altura, tu e o Rui tinham acabado de discutir…
As palavras dela eram facas. Lembrei-me daquela noite há quase um ano, quando Rui saiu de casa depois de uma discussão sobre dinheiro e trabalho. Eu tinha ficado sozinha, a chorar no sofá, enquanto ele desaparecia para “espairecer”. Nunca soube onde tinha ido. Agora sabia.
O meu coração batia descompassado. O Rui era meu marido há sete anos. Sete anos de altos e baixos, de sonhos partilhados e de promessas sussurradas ao luar na praia da Costa da Caparica. E a Inês? Era minha amiga desde o liceu em Setúbal, companheira de todas as horas, confidente dos meus segredos mais profundos. Como é que tudo isto podia ter acontecido?
— Mariana… — murmurou ela, estendendo-me a mão trémula. — Eu tentei afastar-me dele depois disso. Nunca mais aconteceu nada! Mas quando descobri que estava grávida… já era tarde demais.
Afastei-me do toque dela como se queimasse. O meu corpo tremia de raiva e incredulidade.
— E o Rui? Ele sabe?
Ela abanou a cabeça devagarinho. — Não. Disse-lhe que era do Pedro… Ele nunca desconfiou.
O Pedro era o namorado dela na altura, um rapaz simpático mas ausente, sempre ocupado com os turnos no hospital veterinário. Tinham acabado pouco depois da gravidez ser conhecida. Agora tudo fazia sentido: o afastamento do Pedro, o silêncio estranho do Rui sempre que se falava do bebé.
O telemóvel vibrou no bolso do casaco. Era uma mensagem do Rui: “Já saí do trabalho, passo por casa para jantar?” Senti uma náusea subir-me à garganta. Como é que eu ia encarar aquele homem? Como é que ia olhar para ele sem ver a traição estampada no rosto?
Levantei-me devagar, tentando recompor-me.
— Preciso de ir — disse num sussurro. — Preciso de pensar.
Saí do hospital sem olhar para trás, sentindo o peso do mundo nos ombros. A chuva caía forte sobre Lisboa, mas nem dei por ela enquanto caminhava até ao carro. O trânsito estava caótico como sempre àquela hora; buzinas e luzes misturavam-se com os meus pensamentos desordenados.
Cheguei a casa e encontrei tudo igual: as fotografias nossas na estante, o cheiro familiar do café na cozinha, as roupas do Rui espalhadas pelo sofá. Sentei-me à mesa da sala e enterrei a cara nas mãos.
Quando ele chegou, sorriu como se nada fosse.
— Olá, amor! Então, como está a Inês? O bebé já nasceu?
Olhei-o nos olhos e vi ali o mesmo brilho inquietante que tinha visto nos olhos do Tomás. O mesmo sorriso torto.
— Já nasceu — respondi, tentando controlar a voz. — É lindo.
Ele sentou-se à minha frente e pegou-me nas mãos.
— Estás bem? Pareces distante…
Puxei as mãos para trás e respirei fundo.
— Rui… preciso de te perguntar uma coisa. E quero que sejas sincero comigo.
Ele franziu o sobrolho, preocupado.
— O que se passa?
— Naquela noite em que discutimos… tu estiveste com a Inês?
O silêncio dele foi resposta suficiente. O rosto dele ficou pálido, os olhos arregalados.
— Mariana… eu… foi um erro! Eu estava bêbedo, zangado… Não significou nada!
Levantei-me de rompante.
— Não significou nada? Arruinaste tudo! A nossa vida, a nossa amizade… E agora há uma criança! Uma criança que pode ser tua!
Ele enterrou a cara nas mãos e começou a chorar baixinho. Nunca o tinha visto assim: tão pequeno, tão perdido.
— Eu não sabia… Juro que não sabia que ela estava grávida por minha causa…
A raiva deu lugar ao cansaço. Senti-me esvaziada por dentro.
— Preciso de tempo — disse apenas. — Preciso de pensar no que vou fazer.
Nessa noite não dormi. Fiquei sentada na varanda a ver as luzes da cidade apagarem-se uma a uma. Lembrei-me dos meus pais em Setúbal, das discussões deles quando eu era pequena, das traições sussurradas atrás das portas fechadas. Sempre prometi a mim mesma que nunca deixaria que isso acontecesse comigo. E agora estava ali: traída pela pessoa em quem mais confiava e pela amiga que era como uma irmã.
Os dias seguintes foram um tormento. A Inês mandava mensagens todos os dias: “Desculpa”, “Preciso de ti”, “Não me deixes sozinha”. O Rui tentava compensar com flores e jantares feitos à pressa, mas eu não conseguia perdoar nem esquecer.
No trabalho no escritório de advogados em Lisboa, mal conseguia concentrar-me nos processos dos clientes. Os colegas reparavam no meu ar ausente; até a dona Rosa da limpeza me ofereceu um café forte e um sorriso triste.
Uma tarde, decidi visitar os meus pais em Setúbal. Precisava de voltar às origens para tentar encontrar algum sentido nisto tudo. A minha mãe recebeu-me com um abraço apertado e um prato de arroz de polvo fumegante.
— Filha, estás tão magra… O que se passa?
Desatei a chorar como uma criança perdida. Contei-lhe tudo: a traição do Rui, o segredo da Inês, o bebé Tomás.
Ela ouviu em silêncio e depois pousou a mão sobre a minha.
— Às vezes as pessoas erram porque têm medo de enfrentar os próprios sentimentos — disse ela com aquela sabedoria antiga das mães portuguesas. — Mas tu tens de decidir se consegues perdoar ou se precisas de seguir em frente sozinha.
Fiquei ali durante dias, entre passeios à beira-mar e conversas longas com o meu pai no quintal enquanto ele regava as laranjeiras. Aos poucos fui recuperando forças para enfrentar Lisboa outra vez.
Quando voltei à cidade, marquei um encontro com a Inês num café discreto perto do Jardim da Estrela. Ela chegou nervosa, com olheiras fundas e um ar desfeito.
— Mariana… — começou ela, mas eu levantei a mão para a interromper.
— Não quero ouvir desculpas nem justificações. Só quero saber se vais contar ao Tomás quem é o pai dele quando ele crescer.
Ela ficou em silêncio durante muito tempo antes de responder:
— Não sei… Tenho medo de lhe destruir a vida antes mesmo de começar.
Olhei-a nos olhos e vi ali todo o medo e arrependimento do mundo.
— A verdade dói — disse-lhe eu — mas viver na mentira dói ainda mais.
Saí dali mais leve, como se tivesse deixado parte do peso para trás.
Em casa, sentei-me com o Rui pela última vez à mesa da sala onde tantas vezes sonhámos juntos um futuro diferente.
— Não consigo perdoar-te agora — disse-lhe calmamente. — Talvez um dia consiga entender tudo isto… Mas preciso de me afastar para me reencontrar.
Ele chorou outra vez e tentou agarrar-me as mãos, mas desta vez fui eu quem se afastou primeiro.
Arrumei algumas roupas numa mala pequena e fui para casa dos meus pais em Setúbal por tempo indeterminado. Olhei para trás antes de fechar a porta e senti uma mistura estranha de tristeza e alívio.
Agora escrevo estas palavras sentada no velho terraço dos meus pais enquanto o sol se põe sobre o Sado. Pergunto-me se algum dia conseguirei confiar outra vez em alguém ou se esta dor vai ficar comigo para sempre. Será possível reconstruir uma vida depois de perder tudo aquilo em que acreditávamos?