A Minha Segunda Juventude: Entre o Amor e o Sacrifício
— Mãe, não tenho para onde ir. — A voz da Mariana tremia, os olhos vermelhos de tanto chorar. O Tomás, com apenas quatro anos, agarrava-se à perna dela, sem perceber metade do que se passava.
Fiquei ali, parada na porta da cozinha, com a chávena de café a tremer-me na mão. Tinha acabado de me sentar para ler o jornal, a sonhar com as viagens que faria agora que finalmente tinha tempo para mim. Quarenta e cinco anos e uma vida inteira dedicada aos outros: primeiro aos meus pais doentes, depois ao meu marido, o António, que partiu cedo demais, e por fim à Mariana. Agora que ela já tinha a sua vida feita — ou assim pensava eu — era suposto ser o meu tempo. Mas a vida não quis saber dos meus planos.
— Claro que tens para onde ir, filha. Tens sempre esta casa. — Disse isto sem pensar, mas mal as palavras me saíram da boca senti o peso delas. Sabia que não era só por uns dias. Sabia que aquela dor nos olhos dela não ia passar depressa.
O Tomás olhou para mim e sorriu, inocente. Peguei-lhe ao colo e tentei sorrir também, mas por dentro sentia-me a afundar.
Os primeiros dias foram uma confusão de malas espalhadas pela sala, brinquedos no corredor e choros a meio da noite. Mariana dormia pouco e falava ainda menos. Eu tentava não fazer perguntas, mas a curiosidade corroía-me por dentro. O que teria acontecido entre ela e o Pedro? Sempre pensei que eram felizes.
Uma noite, enquanto lavava a loiça, ouvi-a soluçar baixinho na varanda. Fui ter com ela.
— Mariana, filha… — Sentei-me ao lado dela. — Queres falar?
Ela abanou a cabeça, mas depois desabou:
— Ele traiu-me, mãe. Com uma colega do trabalho. E eu… eu aguentei durante meses porque não queria destruir a família do Tomás. Mas já não conseguia mais.
Abracei-a com força. Senti-me dividida entre a raiva pelo Pedro e a tristeza pela minha filha. Mas também senti medo: medo de voltar à rotina de cuidar de alguém, de perder o pouco espaço que tinha conquistado para mim.
Os dias foram passando e as pequenas irritações começaram a surgir. O Tomás fazia birras constantes; Mariana estava sempre cansada e impaciente; eu tentava manter a casa em ordem mas sentia-me cada vez mais invisível.
— Mãe, não mexas nas minhas coisas! — Gritou Mariana um dia, quando tentei arrumar o quarto dela.
— Só queria ajudar… — respondi, magoada.
— Não preciso da tua ajuda! — Ela bateu com a porta.
Fiquei ali parada no corredor, sentindo-me uma intrusa na minha própria casa. Lembrei-me dos meus sonhos de liberdade: as caminhadas à beira-mar sozinha, os jantares com amigas sem ter de dar satisfações a ninguém. Agora tudo isso parecia tão distante.
Uma noite, depois de adormecer o Tomás, sentei-me na sala às escuras. Ouvi passos atrás de mim; era Mariana.
— Desculpa, mãe… — murmurou ela. — Estou tão perdida…
— Eu também estou, filha — confessei. — Achei que esta fase da minha vida ia ser diferente.
Ela sentou-se ao meu lado e chorámos juntas. Pela primeira vez em muito tempo senti que estávamos realmente próximas.
Mas os problemas não desapareceram. Mariana começou a procurar trabalho e eu fiquei encarregue do Tomás durante o dia. Ele era um miúdo doce mas exigente; às vezes gritava pelo pai ou fazia perguntas difíceis:
— Avó, porque é que a mamã chora tanto?
O meu coração partia-se um bocadinho mais cada vez que ouvia aquilo.
As contas começaram a apertar. A Mariana só arranjava trabalhos temporários e mal pagos; eu vivia da pensão do António e de uns trocos que fazia a costurar para fora. Começámos a discutir por tudo e por nada: quem gastava mais luz, quem deixava a loiça por lavar, quem se esquecia de comprar pão.
Um dia, depois de uma discussão mais acesa sobre dinheiro, Mariana atirou:
— Se te incomodamos tanto diz-nos para irmos embora!
— Não digas disparates! — gritei eu. — Só queria um pouco de paz nesta casa!
Ela saiu batendo com a porta. Fiquei sozinha na cozinha, com as mãos a tremer e lágrimas nos olhos.
Nessa noite não consegui dormir. Fui até ao quarto do Tomás; ele dormia tranquilo, abraçado ao boneco preferido. Sentei-me na beira da cama dele e chorei baixinho. Senti-me velha, cansada e inútil.
No dia seguinte tentei falar com Mariana.
— Filha… precisamos de encontrar uma maneira de viver juntas sem nos magoarmos tanto.
Ela olhou para mim com os olhos inchados:
— Eu sei… mas é tão difícil…
Começámos então a dividir tarefas: ela tratava das compras e da limpeza da casa ao fim-de-semana; eu cuidava do Tomás durante a semana. Aos poucos fomos encontrando um equilíbrio frágil.
Houve momentos bons também: tardes no parque com o Tomás a correr atrás dos pombos; jantares em família onde ríamos das pequenas desgraças do dia-a-dia; noites em que partilhávamos memórias antigas e sonhos adiados.
Mas havia sempre uma sombra pairando sobre nós: o medo do futuro, a incerteza sobre quanto tempo aquela situação iria durar.
Um dia recebi uma carta do banco: estavam prestes a aumentar o valor da prestação da casa. Senti o chão fugir-me dos pés. Falei com Mariana; ela chorou outra vez.
— Não posso pedir-te mais sacrifícios, mãe…
— Somos família — respondi eu. — Vamos dar a volta juntos.
Ela abraçou-me como quando era criança. Nesse momento percebi que talvez nunca tivesse realmente deixado de ser mãe a tempo inteiro; talvez nunca deixasse.
O tempo foi passando e Mariana conseguiu finalmente um emprego melhor numa escola primária ali perto. Começou a sorrir mais; o Tomás adaptou-se à nova rotina; eu voltei a sonhar — não com viagens ou liberdade absoluta, mas com pequenos momentos de paz: um café ao sol na varanda, um livro lido até ao fim sem interrupções.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi… mas também tudo o que ganhei: uma relação mais forte com a minha filha; uma ligação única com o meu neto; uma nova compreensão do que significa ser família.
Às vezes pergunto-me: será que alguma vez terei direito ao tal tempo só para mim? Ou será este o verdadeiro sentido da vida — estar presente quando somos precisos?
E vocês? Já sentiram que os vossos sonhos tiveram de esperar pelos sonhos dos outros?