O Preço da Amizade: Recomeçar Depois do Divórcio
— Então, Miguel, já recebeste a partilha da casa? — perguntou o Rui, com aquele tom meio casual, meio ácido, enquanto mexia o café na chávena. O barulho da colher parecia ecoar no silêncio pesado do café de bairro onde nos encontrávamos todas as sextas-feiras desde a faculdade.
Olhei para ele, tentando decifrar se era preocupação ou pura curiosidade. Desde o divórcio com a Ana, há seis meses, sentia-me um livro aberto nas mãos de toda a gente — mas o Rui era diferente. Sempre fora o meu confidente, o amigo das noites longas e dos segredos partilhados à beira do Tejo. Agora, porém, cada pergunta dele parecia uma faca a cortar as minhas defesas.
— Ainda não. Está tudo parado no tribunal — respondi, tentando soar indiferente. Mas a verdade é que cada vez que falava do assunto sentia um nó no estômago. O dinheiro, a casa, as memórias… tudo misturado num cocktail amargo que me tirava o sono.
O Rui encostou-se para trás e sorriu de lado. — Sabes, eu sempre disse que casar cedo era má ideia. Agora vê no que deu…
Mordi o lábio para não responder à provocação. Não era só o divórcio que me doía; era esta sensação de que todos à minha volta esperavam que eu falhasse. Até a minha mãe, Dona Teresa, não perdia uma oportunidade para me lembrar: “Miguel, devias ter ouvido mais os mais velhos.”
— E tu? Como está a Andreia? — perguntei, tentando mudar de assunto.
Ele encolheu os ombros. — Como sempre. A reclamar do trabalho, dos miúdos… Sabes como é.
Sabia. E sabia também que o Rui nunca perdoou o facto de eu ter tido sucesso antes dele. Quando comprei o apartamento em Campo de Ourique, foi ele quem me ajudou a pintar as paredes — mas também foi ele quem comentou, meio a brincar: “Isto é vida de rico.” Agora, com tudo a desmoronar-se à minha volta, sentia quase um alívio mal disfarçado nos olhos dele.
— Olha lá — disse ele de repente —, já pensaste em vender o carro? Aquilo ainda vale uns bons milhares…
Suspirei. — Preciso dele para o trabalho.
— Trabalho… — repetiu ele, como se fosse uma piada privada. — Ainda estás naquela consultora?
Assenti. Mas a verdade é que as coisas estavam tremidas. Desde que fiquei sozinho, tudo parecia mais difícil: as contas acumulavam-se, as noites eram longas e vazias, e até os colegas pareciam olhar para mim com pena.
Naquela noite, ao chegar ao meu pequeno T2 alugado em Benfica — uma queda brutal depois de anos num apartamento luminoso com vista para o rio — sentei-me no sofá e deixei-me afundar nos pensamentos. O telemóvel vibrava com mensagens da minha irmã, Mariana: “Mãe está preocupada contigo.” “Vais ao almoço de domingo?”
Não queria ir. Não queria ouvir os olhares de pena do meu pai, nem os comentários velados dos tios sobre como “os homens modernos já não sabem manter uma família”. Mas sabia que não podia fugir para sempre.
No domingo seguinte, lá estava eu à mesa da velha casa dos meus pais em Almada. O cheiro do assado da minha mãe misturava-se com a tensão no ar.
— Então, filho, já pensaste em voltar para casa? — perguntou ela baixinho, enquanto me servia mais batatas.
— Não preciso disso, mãe. Estou bem assim.
O meu pai olhou-me por cima dos óculos. — Um homem tem de saber dar a volta por cima.
A Mariana tentou aliviar: — O Miguel só precisa de tempo. Todos precisamos.
Mas eu sentia-me cada vez mais pequeno naquela sala cheia de expectativas e julgamentos.
À noite, liguei ao Rui. Precisava de desabafar.
— Achas que algum dia isto passa? — perguntei-lhe.
Ele riu-se. — Passa tudo na vida, Miguel. Menos as dívidas!
O riso dele soou-me falso. E naquele momento percebi: havia algo quebrado entre nós. Não era só inveja ou ciúme; era como se ele precisasse de me ver em baixo para se sentir melhor consigo próprio.
Nas semanas seguintes comecei a evitar os encontros com o Rui. Ele mandava mensagens: “Hoje há jogo no café?” “Precisas de boleia?” Mas eu arranjava desculpas: trabalho, cansaço, reuniões inventadas.
Comecei também a sair sozinho. Descobri um pequeno bar perto de casa onde ninguém me conhecia. Ali podia ser só mais um rosto na multidão. Uma noite conheci a Joana — cabelos curtos, sorriso tímido e um olhar curioso.
— Vens sempre sozinho? — perguntou ela.
Sorri. — Ultimamente sim. É mais fácil assim.
Ela assentiu. — Às vezes precisamos mesmo de estar sozinhos para nos encontrarmos outra vez.
Falámos durante horas sobre tudo e nada: música portuguesa, livros antigos, sonhos adiados. Pela primeira vez em meses senti-me ouvido sem ser julgado.
Com o tempo fui-me aproximando da Joana e afastando do Rui. Ele não gostou.
— Agora já tens companhia nova? — mandou ele numa mensagem seca.
Respirei fundo antes de responder: — Preciso de espaço para mim próprio.
Ele não respondeu mais naquela noite.
No trabalho as coisas também começaram a melhorar devagarinho. O chefe chamou-me ao gabinete:
— Miguel, sei que tens passado uma fase difícil… Mas precisamos de ti focado aqui.
Assenti e prometi dar o meu melhor. Aos poucos fui recuperando alguma confiança em mim próprio.
Certo dia encontrei o Rui por acaso na rua Augusta. Ele estava diferente: mais magro, olhar cansado.
— Olha quem é ele! O homem ocupado… — disse ele com ironia.
— Rui… Não quero discutir contigo.
Ele baixou os olhos. — Desculpa se fui demasiado duro contigo… Só não queria perder o meu melhor amigo.
Ficámos ali parados uns segundos longos demais para serem confortáveis.
— Às vezes temos de perder tudo para perceber quem somos realmente — disse eu finalmente.
Ele assentiu em silêncio e afastou-se devagar pela multidão da Baixa lisboeta.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci neste tempo todo. Perdi uma casa, uma mulher e quase perdi um amigo… Mas ganhei algo mais importante: aprendi a confiar em mim próprio outra vez.
Às vezes pergunto-me: quantas amizades sobrevivem à inveja e ao silêncio? Será possível reconstruir laços depois de tanta dor? E vocês… já sentiram que alguém vos queria ver cair só para se sentir melhor?