A Minha Filha Diz Que Sou Uma Má Avó: Entre o Amor e o Limite

— Teresa, não percebo como consegues ser tão egoísta! — gritou a minha filha, Inês, com os olhos marejados de lágrimas. — És a minha mãe, és a avó deles! Não podes simplesmente virar as costas quando mais preciso de ti!

As palavras dela ecoaram na cozinha fria, entre as chávenas de café por lavar e o cheiro a sopa queimada. O meu coração apertou-se, como tantas outras vezes ao longo dos anos. Olhei para ela, tão parecida comigo aos trinta e cinco anos, mas tão diferente. Senti-me velha, cansada, e ao mesmo tempo cheia de uma raiva surda que não sabia explicar.

— Inês, filha… — tentei começar, mas ela interrompeu-me.

— Não venhas com desculpas! O pai está doente, eu sei, mas tu ainda trabalhas! Se tens energia para os outros, porque não para os teus netos? Achas que é fácil para mim estar desempregada, com duas crianças pequenas? — A voz dela tremia entre o desespero e a acusação.

Fechei os olhos por um instante. Vi-me há trinta anos atrás, grávida da Inês aos vinte, sozinha num T1 em Chelas, sem dinheiro nem apoio. Lembrei-me das noites em claro, do pão com manteiga como jantar, das lágrimas escondidas para não assustar a minha filha. Sempre lutei por ela. Sempre pus a família à frente de tudo.

Mas agora… agora era diferente. O meu marido, o António, estava acamado há meses. A reforma mal dava para os medicamentos. Eu limpava escadas em três prédios para pagar as contas. Os meus ossos doíam todos os dias. E ainda assim, sentia-me culpada por não conseguir dar mais.

— Inês — disse baixinho — eu amo os teus filhos. São meus netos. Mas eu não sou a mesma mulher de há vinte anos. O teu pai precisa de mim. Eu preciso de mim. Não posso ser tudo para todos.

Ela virou-me as costas, furiosa. Pegou nas mochilas dos miúdos e saiu porta fora, batendo com força. Fiquei ali parada, a tremer, com as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.

Naquela noite, sentei-me ao lado do António. Ele olhou para mim com aqueles olhos cansados e sorriu.

— Deixa lá, Teresa. Ela vai perceber um dia.

Mas será que vai? Será que alguma vez vai entender o peso que carrego nos ombros? Ou será que vai sempre ver-me como a mãe fria que não quis ajudar?

Os dias seguintes foram um silêncio pesado entre nós. A Inês não me ligava. Os miúdos não vinham cá. Senti falta deles — do riso do Tomás, das perguntas sem fim da Leonor — mas também senti um alívio estranho por poder respirar sem aquela pressão constante.

No trabalho, as colegas comentavam:

— A tua filha devia era arranjar emprego em vez de te atirar os miúdos para cima! — dizia a Dona Lurdes.

— Mas sabes como é… hoje em dia os jovens acham que os pais têm obrigação de tudo — respondia a Carla.

Eu encolhia os ombros e sorria amarelo. Ninguém sabia o que era amar tanto alguém ao ponto de se perder a si própria.

Uma tarde, depois de limpar o último patamar do prédio da Dona Emília, sentei-me nas escadas e chorei baixinho. Senti-me sozinha como nunca antes. Queria gritar à Inês tudo o que me ia na alma: o medo de perder o António, o cansaço dos dias iguais, a saudade da minha mãe — que morreu cedo demais para me ensinar como ser avó.

Lembrei-me da última conversa séria que tive com a Inês antes dela casar:

— Mãe, prometes que nunca me vais abandonar?

— Prometo, filha. Mas também tens de prometer que vais aprender a caminhar sozinha.

Ela riu-se na altura. Agora percebo que nunca aprendeu realmente.

Uma semana depois da discussão, recebi uma mensagem curta:

«Preciso de falar contigo.»

O coração disparou-me no peito. Convidei-a para vir cá a casa. Quando entrou, vinha com os olhos inchados e o cabelo desgrenhado.

— Mãe… desculpa — murmurou ela, sentando-se à minha frente. — Eu estou perdida. Sinto-me uma falhada. Não consigo emprego em lado nenhum… O Pedro está cada vez mais ausente… E eu só queria sentir que ainda tenho uma família.

Aproximei-me dela devagarinho e abracei-a. Senti-a tremer nos meus braços como quando era pequena.

— Filha… eu estou aqui. Mas preciso que percebas que também tenho limites. Não sou menos tua mãe ou menos avó por isso.

Ela chorou baixinho no meu ombro.

— Tenho medo de não ser suficiente para os meus filhos…

— Todos temos esse medo — respondi-lhe. — Mas sabes? Às vezes amar é saber dizer não.

Conversámos durante horas naquela tarde. Falámos do passado, das dores antigas e das feridas abertas. Pela primeira vez em muito tempo senti que nos ouvíamos verdadeiramente.

No final desse dia, combinámos um novo acordo: eu ajudaria quando pudesse, mas não seria mais a solução para todos os problemas dela. Ela prometeu procurar ajuda profissional e tentar arranjar trabalho nem que fosse numa loja ou num café.

Os meses passaram devagarinho. O António piorou e acabou por partir numa manhã chuvosa de novembro. A Inês esteve ao meu lado no funeral; segurou-me a mão como quando era criança.

Hoje olho para trás e vejo uma vida cheia de sacrifícios e amor — mas também cheia de silêncios e mágoas não ditas. A Inês arranjou finalmente um emprego numa pastelaria; os miúdos vêm cá aos fins-de-semana e enchem a casa de gargalhadas outra vez.

Mas às vezes pergunto-me: será que fiz bem em impor limites? Ou devia ter continuado a sacrificar tudo pela família? Até onde vai o dever de uma mãe… ou de uma avó? E vocês… já se sentiram assim?