Entre o Trabalho e a Solidão: Quando a Minha Mãe Recusou Ajudar-me

— Não posso, Carmen. Não me peças mais isso. — A voz da minha mãe ecoou fria pela cozinha, cortando o silêncio como uma lâmina. Eu estava de pé, com as mãos trémulas agarradas à chávena de café, tentando engolir o nó na garganta.

— Mãe, por favor… Só preciso que fiques com eles até eu sair do trabalho. — Senti as lágrimas a quererem saltar, mas forcei-me a manter a voz firme. — Eu não tenho mais ninguém.

Ela desviou o olhar, fixando-se na janela embaciada pela chuva de novembro. — Já cuidei de ti e dos teus irmãos. Agora quero paz. Não sou obrigada a criar os teus filhos.

Naquele momento, tudo dentro de mim se partiu. O meu marido, o João, tinha partido há seis meses. Um acidente estúpido na estrada, uma chamada às três da manhã, e de repente fiquei sozinha com três crianças: o Miguel de oito anos, a Sofia de cinco e o Tiago de dois. Desde então, cada dia era uma batalha para manter a casa, pagar as contas e não desabar à frente deles.

A minha mãe sempre fora dura, mas nunca pensei que me virasse as costas assim. Lembro-me de quando era pequena e ela me embalava ao colo nas noites em que o meu pai chegava bêbado e gritava connosco. Achei que, agora que eu precisava dela, ela estaria lá. Mas estava enganada.

— Então o que queres que faça? — perguntei, já sem forças.

Ela encolheu os ombros. — Arranja uma ama. Ou pede à vizinha. Eu já dei o que tinha a dar.

Saí dali sem dizer mais nada. O vento frio bateu-me na cara quando fechei a porta atrás de mim. Senti-me pequena, abandonada. Como é que uma mãe consegue virar costas à filha assim?

Os dias seguintes foram um turbilhão. Liguei para todas as amas do bairro, mas nenhuma podia ficar com três crianças por menos de quinhentos euros por mês — dinheiro que eu não tinha. No trabalho, o patrão começou a olhar-me de lado pelas chegadas tardias e saídas apressadas. Uma vez, apanhei-o a cochichar com a colega do lado:

— Ela não vai aguentar muito tempo assim…

À noite, depois de deitar os miúdos, sentava-me no sofá com a cabeça entre as mãos. O silêncio da casa pesava-me nos ombros como um manto molhado. Às vezes chorava baixinho para não os acordar. Outras vezes gritava em silêncio para dentro de mim: Porquê eu? Porquê agora?

O Miguel começou a perguntar pelo pai todas as noites.

— Mãe, o pai vai voltar? — Os olhos dele brilhavam na penumbra do quarto.

— Não, filho… O pai está no céu — respondia sempre, tentando sorrir.

A Sofia fazia birras por tudo e por nada. O Tiago chorava sem parar sempre que eu saía para trabalhar. Senti-me a falhar em tudo: como mãe, como filha, como mulher.

Uma tarde, ao buscar os miúdos à escola, a professora da Sofia chamou-me de parte.

— Carmen, está tudo bem em casa? A Sofia anda muito calada… desenha sempre nuvens escuras e diz que tem saudades do pai.

Senti um aperto no peito. Tentei explicar-lhe que estava a fazer o melhor que podia, mas ela apenas sorriu com pena.

No fim-de-semana seguinte, decidi tentar falar com a minha mãe outra vez. Levei os miúdos comigo e bati-lhe à porta.

— O que é agora? — perguntou ela ao abrir.

— Mãe… Eles sentem a tua falta. Eu também. Não podemos tentar ser uma família outra vez?

Ela olhou para os netos durante uns segundos longos demais. Depois virou-se para mim:

— Carmen, eu já não tenho idade para isto. Quero descansar. Tu é que escolheste ter filhos…

O Miguel agarrou-se à minha perna e sussurrou:

— Vamos embora, mãe.

Saí dali com o coração ainda mais pesado do que antes. No caminho para casa, o Miguel perguntou:

— A avó não gosta de nós?

Quis dizer-lhe que sim, mas não consegui mentir-lhe nos olhos.

As semanas passaram e comecei a sentir-me cada vez mais exausta. Um dia acordei com febre alta e dores no corpo todo. Não consegui levantar-me da cama. Liguei para o trabalho a dizer que estava doente e pedi à vizinha do lado, a Dona Emília, se podia ficar com os miúdos por umas horas.

Ela entrou em casa com um sorriso caloroso e um bolo de laranja nas mãos.

— Não te preocupes, menina Carmen. Vai descansar um bocadinho… Eu fico com eles.

Foi nesse dia que percebi que às vezes a família não é só sangue. A Dona Emília passou a ajudar-me sempre que podia: levava os miúdos à escola quando eu tinha de sair cedo, fazia sopa para todos nos dias em que eu não tinha forças para cozinhar.

Mas mesmo assim sentia falta da minha mãe. Sentia falta daquela sensação de ter alguém do meu lado incondicionalmente.

Um domingo à tarde recebi uma chamada inesperada do meu irmão Paulo.

— Ouvi dizer que andas aflita…

— E tu só agora te lembras? — respondi amargurada.

— A mãe contou-me tudo… Disse que estás sempre a pedir-lhe coisas.

Senti raiva a crescer dentro de mim.

— Eu não estou a pedir-lhe coisas! Estou a pedir ajuda! O João morreu! Fiquei sozinha!

Do outro lado ouvi um suspiro pesado.

— Olha… Eu também tenho os meus problemas. Mas posso tentar ficar com os miúdos ao sábado à tarde se quiseres.

Agradeci-lhe sem entusiasmo. Sabia que ele só viria uma ou duas vezes antes de arranjar desculpas para desaparecer outra vez.

No Natal desse ano decidi não ir à casa da minha mãe. Fiquei em casa com os miúdos e convidei a Dona Emília para jantar connosco. Fizemos arroz doce e cantámos canções antigas até tarde. Pela primeira vez desde a morte do João senti um bocadinho de paz.

No entanto, à meia-noite ouvi baterem à porta. Era a minha mãe.

Entrou devagarinho na sala e olhou para nós sem dizer nada durante uns segundos eternos.

— Vim trazer umas rabanadas… — disse finalmente, pousando um prato na mesa.

A Sofia correu para ela e abraçou-lhe as pernas.

A minha mãe ficou ali parada, sem saber o que fazer com os braços no ar. Depois ajoelhou-se devagarinho e abraçou-a de volta.

Naquela noite não falámos sobre o passado nem sobre mágoas antigas. Só partilhámos silêncio e um pouco de ternura envergonhada.

Os meses seguintes continuaram difíceis, mas já não me sentia tão sozinha. A Dona Emília tornou-se quase uma avó para os meus filhos; o Paulo aparecia de vez em quando; até a minha mãe começou a ligar-me às vezes para perguntar se precisávamos de alguma coisa.

Ainda hoje não sei se algum dia vou perdoar totalmente à minha mãe por me ter deixado sozinha naquele momento tão negro da minha vida. Mas aprendi que às vezes temos de encontrar força onde menos esperamos — dentro de nós próprios ou nos braços improváveis de quem nos rodeia.

Às vezes pergunto-me: quantas mães há por aí como eu? E quantas avós há como a minha mãe? Será que algum dia conseguimos quebrar este ciclo de solidão e orgulho? Gostava tanto de saber o que vocês pensam…