O Dia em que a Minha Sogra Decidiu Mudar de Vida (E de Cabelo)
— Filipa, tu achas que este creme faz mesmo crescer o cabelo? — perguntou Dona Lurdes, segurando o meu frasco de sérum capilar como se fosse um troféu recém-descoberto.
O meu coração disparou. O frasco estava quase cheio ontem. Agora, parecia ter metade. Engoli em seco, tentando não mostrar o pânico que me invadia.
— Mãe, esse não é para usar assim… — tentei explicar, mas ela já estava a massajar o couro cabeludo com entusiasmo.
A verdade é que Dona Lurdes sempre foi vaidosa. Desde que ficou viúva, há três anos, a preocupação com a aparência tornou-se quase uma obsessão. O cabelo, outrora volumoso e castanho, agora rareava e mostrava teimosos fios brancos. Eu compreendia o desespero dela, mas sabia que aquele sérum era forte demais para peles sensíveis.
— Filipa, não me venhas com histórias! Se tu usas, eu também posso usar. — O tom dela era de desafio, típico das discussões entre nós.
Suspirei. O meu marido, Rui, estava na sala a ver futebol, alheio ao drama que se desenrolava na cozinha. A minha filha, Leonor, brincava no chão com bonecas, mas olhava de soslaio para nós, sentindo a tensão no ar.
Naquela noite, tentei esquecer o assunto. Mas acordei às três da manhã com um grito vindo do quarto da Dona Lurdes.
— Ai Jesus! Filipa! Rui! Venham cá!
Corri pelo corredor. Encontrei-a sentada na cama, lágrimas a escorrerem pelo rosto. O cabelo estava colado à cabeça, brilhante de óleo e… vermelho? Não podia ser.
— O que é isto? — soluçou ela. — O meu cabelo está a arder!
O cheiro químico era intenso. Peguei no frasco: não era só o sérum capilar. Ela tinha misturado com um tónico facial com ácido glicólico — um produto que eu sempre avisei para não tocar.
— Mãe, isto é perigoso! — exclamei, já a empurrar para a casa de banho para lavar tudo imediatamente.
Mas era tarde demais. O couro cabeludo dela estava inflamado e algumas mechas tinham caído. O desespero tomou conta da casa. Rui apareceu à porta da casa de banho, olhos arregalados.
— O que se passa aqui?
— A tua mãe fez uma mistura explosiva com os meus produtos! — gritei.
Ele olhou para mim como se eu fosse a culpada.
— Não podias ter avisado melhor?
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Eu avisara mil vezes! Mas agora não era altura para discutir. Liguei para a Saúde 24 e seguimos as instruções: lavar bem, aplicar compressas frias e vigiar sinais de alergia grave.
A noite foi longa. Dona Lurdes chorava baixinho no quarto de hóspedes. Rui dormiu no sofá. Eu fiquei a pensar em tudo o que podia ter feito diferente.
No dia seguinte, o ambiente estava pesado. Leonor recusou-se a ir à escola:
— A avó está doente por tua causa? — perguntou-me com olhos grandes e acusadores.
Senti-me esmagada pela culpa e pela injustiça da situação. Preparei o pequeno-almoço em silêncio. Dona Lurdes apareceu à porta da cozinha com um lenço na cabeça.
— Filipa… desculpa — murmurou ela, voz trémula. — Eu só queria sentir-me bonita outra vez.
Aquela frase partiu-me o coração. Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão.
— Mãe, eu compreendo. Mas há coisas que têm de ser feitas com cuidado…
Ela assentiu, lágrimas nos olhos.
Durante semanas, a rotina da casa mudou. Eu escondia os meus produtos num armário trancado. Dona Lurdes evitava espelhos e recusava visitas das amigas do bairro. Rui culpava-me em silêncio; Leonor andava mais calada.
O ponto de viragem veio numa tarde chuvosa de domingo. Estávamos todos na sala quando Dona Lurdes entrou sem lenço na cabeça. O couro cabeludo ainda mostrava manchas vermelhas e falhas de cabelo.
— Chega! — disse ela com voz firme. — Não vou viver escondida por causa disto.
Olhou para mim e para Rui.
— Quero ir ao cabeleireiro amanhã. Filipa, vens comigo?
Assenti, emocionada. No dia seguinte, acompanhámo-la ao salão da Dona Graça, no bairro de Campo de Ourique. Quando Dona Graça viu o estado do cabelo da minha sogra, ficou boquiaberta.
— Ó Lurdes… isto foi algum acidente?
Dona Lurdes olhou para mim e depois para o espelho.
— Foi vaidade e teimosia minha — confessou ela. — Mas quero recomeçar.
Dona Graça sugeriu um corte curto e moderno. Enquanto as tesouras cortavam os últimos fios danificados, senti uma onda de alívio e esperança.
No final, Dona Lurdes olhou-se ao espelho e sorriu pela primeira vez em semanas.
— Afinal… até gosto disto! — exclamou ela.
Voltámos para casa mais leves. Rui pediu desculpa pelo seu comportamento frio; Leonor abraçou a avó com força.
A vida voltou ao normal — ou quase. Dona Lurdes tornou-se ativista contra produtos caseiros perigosos no grupo de vizinhas do bairro. Eu aprendi a importância de explicar (e trancar!) tudo muito bem em casa.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes nos deixamos levar pela pressa de mudar sem ouvir quem sabe? E quantas vezes julgamos sem saber o que vai no coração do outro?