Entre o Amor e o Silêncio: O Peso das Escolhas de Uma Mãe Portuguesa
— Mãe, por favor, não voltes a dizer isso à Inês. Ela já está cansada das tuas insinuações. — A voz do Pedro tremia, mas eu via nos olhos dele uma firmeza que nunca tinha visto antes.
Senti o chão fugir-me dos pés. O Pedro, o meu menino, agora homem feito, defendia aquela mulher que lhe roubara o coração. A Inês. Sempre tão sorridente, tão perfeita aos olhos de todos, menos aos meus. Não era para ele. Nunca foi. Mas como explicar isso sem parecer amarga ou possessiva?
A chuva batia forte nas janelas da nossa casa em Vila Nova de Gaia. O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com o aroma da terra molhada. Lembro-me de olhar para as mãos, já marcadas pelo tempo, e pensar: “Será que perdi mesmo o meu filho?”.
Tudo começou há três anos, quando o Pedro trouxe a Inês pela primeira vez ao almoço de domingo. Ela entrou com aquele ar confiante, cabelo apanhado num coque perfeito, e um sorriso que parecia ensaiado. Cumprimentou-me com dois beijos e um ramo de flores — lírios brancos, como se soubesse que eram os meus preferidos. Mas eu vi logo: ela queria agradar demais.
— Que simpática a tua namorada — disse a minha irmã Rosa, quando ficaram sozinhas na cozinha.
— Simpática demais — respondi eu, baixinho.
Desde então, cada gesto da Inês parecia calculado. Ajudava a pôr a mesa, elogiava o meu arroz de pato, ria das piadas do meu marido António. Mas quando ninguém via, lançava-me olhares frios, quase desafiadores. Ou talvez fosse só a minha imaginação.
O Pedro mudou depois dela. Já não vinha tantas vezes jantar comigo e com o pai. As chamadas tornaram-se mais curtas. Quando ligava, era sempre apressado:
— Mãe, não posso falar agora. Estou com a Inês.
No início tentei ignorar. Afinal, todos os filhos crescem e seguem a sua vida. Mas havia algo naquela relação que me inquietava. A Inês era demasiado perfeita para ser verdadeira.
Comecei a reparar em pequenos detalhes: ela nunca deixava o Pedro falar sozinho comigo; interrompia as conversas com perguntas banais; fazia questão de organizar todos os eventos familiares na casa deles, afastando-nos do nosso lar.
Uma noite, depois de um jantar tenso em casa deles, decidi falar com o Pedro.
— Filho, tens a certeza que estás feliz?
Ele olhou-me com estranheza:
— Claro que sim, mãe. Porque perguntas?
— Não sei… parece-me que mudaste muito desde que estás com a Inês.
Ele suspirou:
— As pessoas mudam, mãe. Eu cresci.
Fiquei magoada com aquela resposta. Crescer não era afastar-se da família. Crescer não era esquecer quem sempre esteve ao lado dele.
Foi então que comecei a agir. Pequenas coisas, nada de grave — pelo menos era isso que eu dizia a mim mesma.
No Natal desse ano, ofereci ao Pedro um álbum de fotografias antigas: ele em criança, nas festas da escola, nos aniversários rodeado de primos e tios. Escrevi na dedicatória: “Para nunca te esqueceres de onde vens”.
A Inês sorriu ao ver o presente, mas percebi-lhe o desconforto nos olhos.
Noutra ocasião, convidei o Pedro para almoçar só comigo e com o pai. Quando ele disse que ia trazer a Inês, inventei uma desculpa:
— O teu pai está doente e não quer visitas hoje.
O António olhou-me de lado, mas não disse nada. Ele sempre foi mais calado, mais resignado às minhas manias.
As coisas começaram a azedar entre mim e a Inês. Ela tornou-se mais fria, mais distante. O Pedro tentava mediar os conflitos:
— Mãe, tens de aceitar que agora tenho uma família também.
Eu respondia sempre:
— A tua família sou eu e o teu pai!
As discussões tornaram-se frequentes. O António começou a evitar estar em casa quando sabia que eles vinham visitar-nos.
Um dia, ouvi sem querer uma conversa entre o Pedro e a Inês no corredor:
— Não aguento mais as insinuações da tua mãe — dizia ela, quase a chorar.
— Eu sei… mas ela é minha mãe.
— E eu sou tua mulher! Quando é que vais pôr limites?
Senti uma dor aguda no peito. Será que estava mesmo a perder o meu filho?
A partir daí, tudo piorou. O Pedro começou a aparecer cada vez menos. Quando vinha, era sempre apressado, nervoso. O António tentava animar-me:
— Deixa-os viver a vida deles, Maria do Carmo.
Mas eu não conseguia.
Comecei a falar mal da Inês à família:
— Aquela rapariga não é trigo limpo… — dizia à Rosa.
— Maria do Carmo, tu é que tens ciúmes — respondia ela.
— Ciúmes? Eu só quero o melhor para o meu filho!
A minha irmã afastou-se de mim durante uns meses depois dessa conversa. Fiquei ainda mais sozinha.
Certa noite, recebi uma chamada do Pedro:
— Mãe… preciso falar contigo.
O tom dele era grave. Senti um frio na barriga.
Quando chegou cá a casa, vinha sozinho. Sentou-se à mesa da cozinha e ficou em silêncio durante uns minutos.
— O que se passa? — perguntei eu.
Ele olhou-me nos olhos:
— A Inês está grávida.
O mundo parou naquele instante. Senti tudo girar à minha volta.
— Vais ser avó — continuou ele, tentando sorrir.
Mas eu não consegui sorrir de volta.
Nos meses seguintes tentei aproximar-me da Inês por causa do bebé. Fui às compras com ela para escolher roupinhas, ofereci-lhe bolos caseiros… mas sentia sempre uma barreira invisível entre nós.
Quando nasceu a pequena Matilde, chorei ao vê-la nos braços do Pedro. Era igualzinha a ele em bebé: os mesmos olhos grandes e curiosos.
Pensei que talvez agora tudo mudasse. Que talvez pudesse recuperar o meu filho através da neta.
Mas estava enganada.
A Inês fez questão de organizar o batizado sem me consultar em nada. Escolheu os padrinhos entre os amigos dela e do Pedro — nem sequer perguntou se queria ser madrinha da Matilde.
No dia do batizado sentei-me num canto da igreja e chorei baixinho. O António apertou-me a mão:
— Tens de aceitar as escolhas do nosso filho…
Mas como aceitar perder quem mais amamos?
O tempo passou e fui-me afastando cada vez mais do Pedro e da família dele. As chamadas tornaram-se raras; as visitas ainda mais espaçadas.
Um dia recebi uma mensagem da Inês:
“Maria do Carmo, gostava que viesse cá jantar connosco amanhã.”
Fiquei surpreendida — talvez fosse uma oportunidade para recomeçar.
Quando cheguei à casa deles, fui recebida pela Matilde com um abraço apertado:
— Avó!
O Pedro sorriu-me pela primeira vez em muito tempo.
Durante o jantar tentei ser cordial com a Inês; ela também parecia mais aberta.
No final da noite, enquanto arrumávamos a cozinha juntas, ela virou-se para mim:
— Sei que não gosta muito de mim… mas quero mesmo que faça parte da vida da Matilde.
Fiquei sem palavras. Senti vergonha das minhas atitudes passadas.
Quando voltei para casa nessa noite, sentei-me na sala escura e chorei como há muito não chorava.
O António sentou-se ao meu lado:
— Nunca é tarde para mudar…
Hoje tento ser uma mãe diferente — menos controladora, mais presente sem sufocar. Aprendi à força que o amor não se impõe; conquista-se todos os dias com gestos pequenos e sinceros.
Às vezes pergunto-me: quantas mães portuguesas sentem este medo de perder os filhos? Quantas acabam por afastá-los ainda mais ao tentar protegê-los? Será que algum dia aprendemos mesmo a deixar ir?