“Ficaste a Ver o Meu Casamento Desmoronar”: O Silêncio de Uma Mãe e o Preço da Neutralidade
“Mãe, tu só ficaste a ver! Não disseste nada, não fizeste nada… Como é que pudeste?”
As palavras da Inês ecoam-me na cabeça como um trovão. Estou sentada na cozinha, as mãos a tremerem em cima da mesa de madeira gasta, enquanto o cheiro do café frio se mistura com o peso do silêncio. O relógio marca quase meia-noite, mas o tempo parece ter parado desde que ela me atirou aquelas palavras à cara. Oiço ainda o som da porta a bater, a raiva dela a vibrar nas paredes desta casa onde sempre tentei manter a paz.
Inês sempre foi diferente de mim. Eu cresci numa aldeia perto de Viseu, filha única de pais calados, habituada ao sossego e à rotina. Quando casei com o António, prometemos nunca levantar a voz um ao outro. Criámos a Inês nesse ambiente – sem gritos, sem discussões, tudo resolvido com conversas baixas e olhares cúmplices. Mas ela… Ela nasceu com fogo nas veias. Desde pequena que fazia birras de horas, batia o pé, dizia “não” só porque sim. Lembro-me de uma vez, tinha ela seis anos, que ficou sentada no chão do supermercado porque eu não lhe comprei um pacote de bolachas. Ficou ali, de braços cruzados, a desafiar-me com os olhos.
A minha mãe dizia sempre: “Essa miúda tem o feitio da avó Rosa.” A avó Rosa, que eu própria mal conheci, era famosa na aldeia por ser teimosa e barulhenta. Diziam que ninguém lhe ganhava uma discussão. E eu via isso na Inês – aquela força bruta, aquela vontade de ser ouvida, mesmo quando ninguém queria ouvir.
Quando ela conheceu o Miguel, tinha vinte e dois anos. Ele era calmo, quase tímido, trabalhava numa loja de informática no centro de Viseu. Achei que talvez ele conseguisse equilibrar o temperamento dela. No início era tudo sorrisos e promessas. Casaram-se depressa demais, se queres que te diga. Eu tentei avisar: “Inês, tens a certeza? Não queres esperar mais um pouco?” Ela respondeu-me com aquele olhar de desafio: “Mãe, eu sei o que faço.”
Os primeiros meses foram um mar de rosas – ou assim parecia. Mas depois começaram as discussões. Pequenas coisas: ele deixava a toalha molhada em cima da cama, ela esquecia-se de pagar uma conta. Mas com eles nunca era só isso. As discussões cresciam como incêndios no verão – rápidas e incontroláveis.
Lembro-me de um domingo à tarde em que vieram cá jantar. A Inês entrou pela porta já com os olhos vermelhos. O Miguel vinha atrás dela, cabisbaixo. Sentei-os à mesa e tentei puxar conversa sobre trivialidades – o tempo, o trabalho, as notícias. Mas ela explodiu:
— Sabes o que ele fez? Esqueceu-se do nosso aniversário! Nem uma mensagem! — gritou ela.
O Miguel tentou explicar-se:
— Inês, já te pedi desculpa… Tive um dia complicado no trabalho.
Ela atirou-lhe um olhar gelado:
— Pois claro! O trabalho é sempre mais importante do que eu!
Eu olhei para o António, que me fez sinal para não intervir. E eu calei-me. Sempre achei que os problemas deles eram deles para resolverem. Não queria ser aquela sogra que se mete em tudo.
Mas as discussões foram ficando mais feias. Uma noite, a Inês ligou-me a chorar:
— Mãe, não aguento mais! Ele não me ouve! Sinto-me sozinha nesta casa!
Eu ouvi-a em silêncio, tentando escolher as palavras certas:
— Filha, às vezes é preciso ceder um bocadinho… Tenta falar com ele com calma.
Ela bufou:
— Tu nunca percebes! Achas sempre que sou eu o problema!
E desligou.
O António dizia-me para não me preocupar tanto:
— Eles são adultos, Maria. Têm de aprender sozinhos.
Mas eu sentia-me dividida entre querer proteger a minha filha e respeitar o espaço dela. Lembro-me das noites em claro, a olhar para o teto do quarto, a perguntar-me se devia ter feito mais.
As coisas pioraram quando ela perdeu o emprego. Andava nervosa, irritadiça. O Miguel começou a fazer horas extra para compensar as despesas. Ela sentia-se cada vez mais sozinha.
Uma tarde, apareceu cá em casa sem avisar. Trazia uma mala na mão e os olhos inchados de tanto chorar.
— Acabou — disse apenas.
Sentei-a no sofá e abracei-a enquanto ela soluçava:
— Ele não me entende… Nunca me ouviu… E tu? Tu nunca disseste nada! Nunca me defendeste!
Fiquei sem palavras. O que podia eu dizer? Que sempre tive medo de piorar as coisas? Que temi ser acusada de meter o bedelho onde não era chamada?
Os dias seguintes foram um turbilhão. O Miguel ligou-me uma vez:
— Dona Maria… A Inês está bem?
Respondi-lhe apenas:
— Está em casa comigo.
Ele ficou em silêncio do outro lado da linha.
A Inês passou semanas fechada no quarto de infância, sem querer ver ninguém. Eu tentava animá-la com pequenos gestos – um chá quente, uma fatia de bolo – mas ela mal falava comigo.
Uma noite ouvi-a ao telefone com uma amiga:
— A minha mãe nunca me apoiou… Ficou sempre do lado dele…
Senti uma dor aguda no peito. Era isso que ela pensava? Que eu nunca estive do lado dela?
Quando finalmente saiu do quarto para jantar comigo e com o pai, olhou-me nos olhos e disse:
— Mãe… Porque é que nunca disseste nada? Porque é que nunca me defendeste?
Respirei fundo antes de responder:
— Filha… Eu só queria respeitar as tuas escolhas. Não queria meter-me onde não era chamada.
Ela abanou a cabeça:
— Às vezes precisamos que alguém nos diga aquilo que não queremos ouvir…
Ficámos em silêncio durante minutos intermináveis.
Agora olho para trás e pergunto-me: teria feito diferença se tivesse dito alguma coisa? Se tivesse tomado partido? Ou será que teria só alimentado mais discussões?
A Inês acabou por arranjar outro emprego e alugou um pequeno apartamento no centro da cidade. Vejo-a menos vezes agora. Quando nos encontramos, há sempre um muro invisível entre nós – feito de tudo aquilo que ficou por dizer.
Às vezes dou por mim a olhar para fotografias antigas: a Inês em pequena, de braços cruzados e olhar desafiador; eu e o António ao fundo, sorridentes mas cansados. Pergunto-me se alguma vez fui realmente a mãe que ela precisava.
Hoje escrevo esta história porque sei que há outras mães como eu – presas entre o medo de interferir e o medo de perder uma filha. Será que fiz bem em ficar calada? Ou será que devia ter gritado quando vi o casamento dela desmoronar?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde deve ir o silêncio de uma mãe?