Entre o Sucesso e o Silêncio: O Preço de Ser Avó

— Mãe, não comeces outra vez, por favor. — A voz da Ana, cansada, ecoa pela cozinha enquanto ela ajeita a mala do portátil. O relógio marca sete e meia da manhã, e já sinto o peso do dia nos ombros.

— Não estou a começar, filha. Só queria saber se vais chegar a tempo de jantar com a Leonor hoje — respondo, tentando esconder a preocupação na voz. Ela suspira, desviando o olhar para o chão.

— O Miguel tem uma reunião em Lisboa, eu tenho uma apresentação importante… A Marta fica com ela. — O tom é prático, quase frio.

A Marta. A ama que conhece os primeiros passos da minha neta melhor do que eu ou os próprios pais. Sinto uma pontada de ciúme, misturada com tristeza e uma raiva surda que não consigo explicar.

Lembro-me de quando a Ana era pequena. Eu trabalhava numa loja de tecidos em Setúbal, o teu pai era motorista de autocarros. Não tínhamos muito, mas havia sempre tempo para um abraço, para um lanche feito à pressa, para ouvir as histórias inventadas antes de dormir. Agora tudo parece diferente. Tudo é urgente, tudo é agenda.

— Ana, desculpa insistir… Mas porque decidiram ter a Leonor agora? Não seria melhor esperar mais um pouco? — arrisco, sabendo que estou a pisar terreno perigoso.

Ela fecha os olhos por um segundo, como se procurasse paciência dentro de si.

— Porque nunca há altura certa, mãe. E porque quisemos. — A resposta é seca, definitiva.

O Miguel entra na cozinha nesse momento, gravata torta e telemóvel colado ao ouvido. Dá um beijo apressado na testa da Ana e outro na bochecha da Leonor, que brinca no tapete com um urso de peluche. Nem repara em mim.

— Marta chega às oito? — pergunta ele, já a sair pela porta.

— Sim — responde a Ana, sem olhar para ele.

O silêncio instala-se depois que ambos saem. Fico ali, sentada à mesa, a ver a minha neta brincar sozinha. Pergunto-me se ela sente falta dos pais ou se já se habituou à presença constante da Marta e à ausência dos que lhe deram a vida.

A Marta chega sempre pontual, sorriso aberto e voz doce. Leonor corre para ela como se fosse família. Sinto-me deslocada na minha própria casa.

— Dona Maria, quer que eu faça o pequeno-almoço para si também? — pergunta ela.

— Não, obrigada. Vou sair um pouco — respondo, tentando disfarçar as lágrimas que ameaçam cair.

Na rua, o ar fresco ajuda-me a pensar. Lembro-me das conversas com as amigas no café: todas se queixam do mesmo. Os filhos trabalham demais, as noras não têm tempo para nada, os netos crescem entre amas e escolas privadas. Mas será isto progresso? Ou estamos todos a perder algo essencial?

À noite, quando finalmente nos sentamos à mesa — eu, Ana e Leonor — o ambiente é tenso. A Ana está exausta, responde por monossílabos às perguntas da filha.

— Mamã, brincas comigo? — pede Leonor, olhos brilhantes de esperança.

— Agora não posso, querida. Tenho de acabar um relatório — diz Ana, já com o portátil aberto à frente do prato.

Sinto uma raiva surda crescer dentro de mim.

— Ana! Ela só quer brincar contigo! — expludo finalmente.

A Ana levanta os olhos do ecrã, furiosa:

— Mãe! Achas que não me custa? Achas que não queria estar mais tempo com ela? Mas alguém tem de pagar as contas! Achas que é fácil?

A Leonor começa a chorar baixinho. Oiço o som do telemóvel da Ana vibrar incessantemente sobre a mesa.

Mais tarde, depois de adormecer a Leonor com uma história inventada — como fazia com a Ana — sento-me no sofá e olho para as fotografias antigas na estante. Vejo uma Ana sorridente ao colo do pai num piquenique no parque da cidade. Vejo-me mais jovem, menos cansada, cheia de sonhos simples: saúde para os meus filhos, uma casa cheia de risos.

Agora tudo parece tão complicado. O dinheiro nunca chega para nada; as prestações da casa nova em Almada são altas; o Miguel quer trocar de carro; a Ana sonha com uma promoção que parece nunca chegar. E no meio disto tudo está a Leonor — pequena demais para perceber o vazio à sua volta.

Uma noite, ouço-os discutir no quarto ao lado:

— Miguel, não aguento mais este ritmo! Sinto que estou a falhar como mãe…

— Achas que eu não sinto o mesmo? Mas se um de nós parar agora… tudo desmorona! — responde ele num sussurro tenso.

Fico ali parada na penumbra do corredor, sem saber se devo intervir ou respeitar o espaço deles. Sinto-me impotente e velha.

No domingo seguinte decido arriscar:

— Ana… porque não pensam em abrandar um pouco? Talvez mudar para uma casa mais pequena…

Ela olha para mim como se eu tivesse dito uma heresia.

— E depois? Voltar atrás? Perder tudo pelo que lutámos? Não percebes que hoje em dia não há espaço para fraquezas?

Penso nas minhas amigas: a Teresa perdeu o marido há dois anos e agora vive sozinha num T1; o filho dela está em Londres há meses sem vir cá; a Lurdes cuida dos netos porque a filha trabalha por turnos no hospital; todas sentimos esta solidão moderna mascarada de progresso.

Os meses passam. A Leonor faz três anos e pede para dormir com a Marta quando tem pesadelos. A Ana chora às escondidas na casa de banho. O Miguel passa cada vez menos tempo em casa.

Um dia encontro a Leonor sentada no chão do quarto, rodeada de brinquedos caros mas sozinha.

— Avó… porque é que a mamã está sempre triste?

Não sei responder-lhe. Abraço-a com força e prometo-lhe baixinho que vou estar sempre ali para ela.

À noite escrevo uma carta à Ana:

“Filha,
Sei que queres dar o melhor à tua filha. Mas às vezes o melhor não é uma casa maior ou brinquedos novos. É tempo. É colo. É ouvir as histórias antes de dormir. Não deixes que o mundo te roube isso.”

Deixo a carta na mesa-de-cabeceira dela e rezo para que leia.

Na manhã seguinte encontro-a na cozinha com os olhos vermelhos.

— Obrigada, mãe — diz apenas, abraçando-me como quando era criança.

Não sei se as coisas vão mudar. Não sei se algum dia vão conseguir abrandar este ritmo louco. Mas sei que vou estar aqui para amparar as quedas e celebrar as pequenas vitórias.

Às vezes pergunto-me: será este o preço do progresso? Será possível conciliar sonhos profissionais com uma família presente? Ou estamos todos condenados a viver entre silêncios e saudades?

E vocês? Também sentem este vazio nas vossas famílias?