Quando a minha filha terminou o secundário, fugi do meu marido – Confissões de uma mulher portuguesa
— Vais mesmo fazer isto, mãe? — perguntou a Mariana, com a voz embargada, enquanto apertava a minha mão com força. O comboio para Lisboa já se ouvia ao longe, e eu sentia as pernas prestes a ceder. O meu coração batia tão alto que parecia ecoar pela gare vazia da estação de Vila Nova de Poiares.
Olhei para a minha filha, tão crescida e ao mesmo tempo tão frágil. O diploma do secundário ainda estava dobrado na mala dela, junto com as poucas roupas que conseguimos enfiar à pressa. O meu marido, o António, ainda devia estar a dormir, embriagado como sempre, alheio ao vazio que deixávamos para trás.
Durante anos aguentei tudo em silêncio. As discussões que começavam por nada — um prato mal lavado, um jantar atrasado — e acabavam sempre com gritos, portas a bater e, por vezes, um estalo ou outro. A aldeia sabia. Toda a gente sabia. Mas ninguém dizia nada. “O António é bom homem, só bebe demais”, murmuravam as vizinhas à porta do café. Eu sorria, fingia que estava tudo bem. Mariana cresceu a ouvir os insultos abafados pelas paredes finas da nossa casa antiga.
Na noite anterior à fuga, sentei-me na cama dela e chorei baixinho. — Não aguento mais, filha. Não quero que penses que isto é normal. — Ela abraçou-me com força e disse: — Vamos embora, mãe. Eu fico contigo.
Agora ali estávamos, duas mulheres sozinhas contra o mundo. O comboio chegou com estrondo e subimos sem olhar para trás. Sentei-me junto à janela e vi a paisagem verdejante da Beira Interior a desaparecer lentamente. Senti um aperto no peito — medo do futuro, culpa por abandonar o passado.
Chegámos a Lisboa sem saber para onde ir. Uma prima distante, a Rosa, acolheu-nos num pequeno apartamento em Chelas. Não era muito — dois quartos minúsculos e uma cozinha onde mal cabiam duas pessoas — mas era seguro. Pela primeira vez em anos dormi sem sobressaltos.
Mas os problemas não ficaram na aldeia. O António começou a ligar-me todos os dias, ora a chorar, ora a ameaçar: — Vais ver o que te acontece se não voltares! — gritava ao telefone. A minha mãe ligou-me também: — Filha, não podes fazer isto ao teu marido! O que é que as pessoas vão dizer? — Senti-me sozinha no mundo.
Mariana tentou arranjar trabalho num café perto de casa, mas ninguém queria contratar uma miúda “do campo” sem experiência. Eu limpei escadas durante meses para pagar as contas e comprar comida. Às vezes sentava-me à janela à noite e perguntava-me se tinha feito bem. Se não teria sido melhor aguentar mais um pouco.
Um dia, ao sair do supermercado, encontrei a minha irmã Ana à porta. Não falávamos há anos — ela nunca perdoou o facto de eu ter ficado com a casa dos pais quando eles morreram. Olhou-me de cima a baixo e disse:
— Então agora és dessas mulheres modernas que abandonam o marido? Que vergonha…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. — Não sabes nada da minha vida, Ana! — respondi entre dentes. Ela virou costas sem dizer mais nada.
Os meses passaram devagar. Mariana começou a fechar-se em si mesma. Passava horas no quarto, sem falar comigo. Um dia ouvi-a chorar baixinho e entrei sem bater.
— O que foi, filha?
— Tenho saudades dos meus amigos… Sinto-me perdida aqui.
Sentei-me ao lado dela e abracei-a. — Também eu me sinto assim todos os dias. Mas temos uma à outra.
Aos poucos fomos criando rotinas novas: passeios pelo bairro ao domingo de manhã, tardes no jardim da Gulbenkian a ler livros emprestados da biblioteca municipal. Mariana inscreveu-se num curso de inglês gratuito na junta de freguesia e começou a sorrir mais.
O António nunca desistiu de tentar controlar-nos à distância. Um dia apareceu à porta da Rosa, bêbado e furioso. Gritou tanto que os vizinhos chamaram a polícia. Fui obrigada a apresentar queixa por violência doméstica — nunca pensei que um dia teria coragem para isso.
A partir daí tudo mudou. Fui chamada ao tribunal de família para explicar porque tinha fugido com a minha filha maior de idade. O advogado do António tentou pintar-me como uma mãe desequilibrada e irresponsável.
— A senhora abandonou o lar conjugal sem motivo válido? — perguntou o juiz.
— Abandonei porque tinha medo de morrer às mãos do meu marido — respondi com voz trémula.
A audiência foi longa e humilhante. Senti-me despida perante estranhos que julgavam cada palavra minha. No fim, o juiz deu-me razão: Mariana podia ficar comigo onde quisesse.
Quando saímos do tribunal, Mariana abraçou-me com força:
— És a mulher mais corajosa que conheço, mãe.
Mas nem tudo ficou resolvido nesse dia. A aldeia virou-me as costas: as minhas tias deixaram de me falar; as vizinhas cruzavam-se comigo no mercado sem me cumprimentar; até o padre fez uma homilia sobre “o valor da família tradicional” no domingo seguinte à nossa partida.
Houve noites em que me senti tentada a voltar atrás só para calar as más línguas. Mas depois olhava para Mariana e lembrava-me do porquê de ter fugido: queria dar-lhe uma vida diferente da minha.
Com o tempo arranjei trabalho numa lavandaria perto do bairro da Graça. Não era glamoroso mas dava para pagar as contas sem depender de ninguém. Mariana entrou na faculdade com bolsa social — foi o dia mais feliz da minha vida vê-la subir ao palco para receber o diploma.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que saiu da estação de comboios com as mãos a tremer. Ainda tenho medo do futuro; ainda sinto o peso dos olhares e dos julgamentos; mas aprendi que há coragem em recomeçar mesmo quando todos esperam que fiquemos caladas.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres continuam presas ao medo só porque ninguém lhes estende a mão? E será que algum dia Portugal vai aprender a ouvir as suas histórias sem julgar?